segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Entrevista - Delfim Netto Risco de "tempestade" diminuiu, mas Delfim quer superávit de 2%

Flavia Lima
Valor Econômico - 23/12/2013

Conjuntura O ex-ministro da Fazenda diz que existe 1,5% de inflação "escondida"
A estratégia do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, de anunciar o início da redução dos estímulos à economia para janeiro diminui o risco da chamada "tempestade perfeita", disse ao Valor PRO, o serviço de informação em tempo real do Valor , o economista Delfim Netto. No lugar de alívio, entretanto, Delfim sugere que o governo brasileiro reforce os cuidados com o que está efetivamente ao seu alcance - a questão fiscal - e, para isso, se comprometa com uma meta de superávit primário de, no mínimo, 2% do PIB.

Delfim não acredita que o governo emita sinais contraditórios quando diz que vai se comprometer com o fiscal, ao mesmo tempo em que afirma que algumas desonerações, como a feita sobre a folha de salários, deveriam ser permanentes.

"Principalmente para os setores exportadores, isso foi uma medida importantíssima. A pior coisa do mundo é ficar fazendo isso aos pedaços. Introduz mais insegurança." Mais otimista do que o mercado, o ex-ministro da Fazenda espera crescimento entre 3% e 3,5% em 2014, puxado por um mundo que segue melhorando, pelos efeitos benéficos do real mais depreciado sobre a indústria local e também pelas concessões em infraestrutura.

Do lado das preocupações, o economista ressalta que a administração de preço por preço não funciona e que há cerca de 1,5% de inflação "escondida".

A presidente, porém, estava certa ao se opor a um gatilho para os preços dos combustíveis, diz. "O que é inconcebível é como o governo teve dificuldade de transmitir a ideia de que o que estava sendo proposto era imbecil".

A seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: O anúncio do Fed reduz as chances do que o senhor chamou de "tempestade perfeita"? Delfim Netto: O Fed fez o primeiro movimento que é, no fundo, uma pequena satisfação ao dizer que vai diminuir os estímulos em US$ 10 bilhões. Em minha opinião, agiu corretamente. A resposta do Banco Central brasileiro foi pertinente, instantânea [ele deve manter o programa de leilões de câmbio].

Quer dizer, fizemos um minueto.

Eles deram um passo, o nosso Tombini [Alexandre Tombini, presidente do BC] recuou e está funcionando. A outra perna da tempestade perfeita era a perspectiva de um desequilíbrio fiscal importante, que estava apoiado em uma coleção de projetos represados no Congresso, alguns dos quais de consequências muito dramáticas.

A tradição da política fiscal não é das boas, essa ideia de usar truques, imaginação, alquimias.

Mas agora parece que foi definitivamente encerrada.

Valor: O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que há a intenção em se comprometer com um superávit de 1,1% do PIB em 2014 como piso...

Delfim: Acho que para recuperar a credibilidade é preciso fixar um superávit primário e se empenhar na sua execução. Em minha opinião tem que ser de, no mínimo, 2% do PIB. Tem que dizer que daqui para frente vai impedir o crescimento da relação entre dívida pública e PIB. Que não vai mais pressionar juros. Isso vai dar uma grande ajuda à política monetária para que em um prazo razoável a inflação convirja para os 4,5%. O governo precisa de um compromisso crível e sem ilusão: só vamos melhorar essa situação crescendo um pouco mais. Com rebaixamento do rating, vamos crescer menos.

Valor: O senhor ainda acredita que podemos descer um degrau na classificação de risco soberano? Delfim: Eu acho que, se não dermos uma resposta clara e crível - pois não adianta ser clara e não ser crível -, corremos um grave risco de ter um rebaixamento. Mas ele, sozinho, vai nos amolar, mas não vai produzir a tempestade perfeita.

A coincidência de cenário agora está um pouco afastada porque os americanos, como dizia o [estadista britânico Winston] Churchill, depois de fazerem tudo errado, acertam. De qualquer forma, uma baixa de rating vai alterar o fluxo de capital, pressionar câmbio e, no momento que pressionar câmbio, a única defesa do país será elevar a taxa de juro real, jogando fora todo o esforço que foi feito até agora.

Vale a pena um compromisso firme e crível sobre a política fiscal porque isso afasta a possibilidade de um rebaixamento. E o "tapering" [redução gradual e estímulos nos EUA] vai se enfrentando à medida que vai acontecendo.

Valor: O governo não dá sinais contraditórios ao sinalizar um comprometimento maior com uma meta de superávit primário para o ano que vem e, ao mesmo tempo, dizer que algumas desonerações podem virar permanentes? Delfim: Não tem nada de contraditório.

Principalmente para os setores exportadores, isso foi importantíssimo.

A pior coisa do mundo é ficar fazendo isso aí aos pedaços, afirmando que vale até o dia 31 de dezembro e aí no dia primeiro ninguém sabe mais nada. Isso introduz mais insegurança. O governo faz muito bem em dizer que determinada desoneração é permanente e vai ser financiada por um imposto sobre as vendas e não sobre os salários. As vantagens disso são enormes. É muito mais inteligente.

Mas temos que caminhar para eliminar uma porção de medidas tópicas de administração microeconômica.

Deixa a coisa fluir. Faz uma intervenção menor. Como na história dos preços de petróleo. Valor: Como assim? Delfim: É inconcebível que algumas pessoas possam defender a ideia de que tem que ter uma fórmula e, ao mesmo tempo, um dia certo para fazer [reajustes de preços de combustíveis]. A fórmula existe, obviamente. O que eu não posso dizer é o seguinte: dia primeiro de abril vai subir o preço do petróleo. Em primeiro lugar, por ser primeiro de abril, ninguém acreditaria. Em segundo lugar, no dia 26 de março terminaria a gasolina em todos os postos. Porque o brasileiro, para ganhar R$ 2, fica oito horas na fila para encher o tanque. E no dia seguinte, o frentista iria esconder a gasolina para querer ganhar com o estoque. Meu Deus do céu, já vimos isso. O que é inconcebível é como o governo teve dificuldade de transmitir a ideia de que o que estava sendo proposto era imbecil. É óbvio que tem que ter uma regra. Mas o aumento tem que ser rigorosamente aleatório.

Nem o ministro pode saber. Não adianta imaginar que se pode ter desequilíbrio fiscal ou déficit em conta corrente permanentes.

Valor: O déficit em conta corrente é uma preocupação? Delfim: É uma amolação que o mercado já corrigiu. E foi produto de erro da política do governo, não vamos ter ilusão. Aconteceu por uma política deliberada de aumentar salários nominais muito acima da produtividade e uso de taxa de juros real imensa para valorizar o câmbio. De tal forma que se produziu uma enorme valorização real do câmbio e destruiu a indústria.

Se você olhar nos últimos doze anos, a indústria perdeu, por causa da valorização do câmbio, mais de US$ 300 bilhões de demanda.

Primeiro, a indústria perdeu a exportação, depois o mercado interno. Por que alguém iria investir nessa situação? Nós tivemos sorte de ter um setor agroindustrial extremamente sofisticado e um setor de serviços também bastante desenvolvido, que substituíram a indústria, mas sem o sucesso do crescimento.

Valor: Essa correção do câmbio deve melhorar um pouco as coisas para a indústria? Delfim: Não tenho dúvidas.

Mas isso não é instantâneo. De novo, eu fico surpreso de ver editoriais dizendo que o câmbio desvalorizado não teve nenhum efeito. Como se o efeito caísse do céu. Primeiro, as pessoas têm que confiar que isso vai continuar acontecendo, pois já apanharam no passado várias vezes. Vai levar de doze a dezoito meses para isso ter algum efeito. E vai ter. Tanto que essa é uma das razões que eu acho que o ano que vem vai ser melhor do que este. Porque o mundo está melhorando. Esse passo dos EUA é importante porque revela que, pela primeira vez, se conseguiu uma maioria confortável no Fed que vê realmente sinais positivos no futuro. A Europa está com seus problemas, mas ajustou o fiscal, os déficits em conta corrente praticamente desapareceram, a China está se reajustando, o Japão crescendo um pouco mais, de forma que vamos ter um ano um pouco melhor.

Provavelmente, 25% da explicação do crescimento do Brasil vêm do mundo. E eu acho que caiu a ficha no governo. A dúvida que existia sobre se era possível continuar fazendo experimentos fiscais atingiu o limite superior.

Acho que vamos melhorar.

Valor: As concessões entram nessa conta? Delfim: Levou muito tempo para o governo aprender como fazia concessão de serviço público, mas melhorou dramaticamente.

Na verdade, a interferência do Ministério da Fazenda junto com a Casa Civil nas relaçõescomos potenciais investidores melhorou tudo. O governo ouvia, mas não escutava. Agora, tanto o Guido [Mantega, ministro da Fazenda] quanto a Gleisi [Hoffmann, ministra- chefe da Casa Civil] ouvem e escutam. Por isso é um sucesso.

O efeito vai ser lento, mas importante.

De qualquer forma, vai acelerar o investimento.

Valor: O senhor parece mais otimista do que a média. Qual o crescimento esperado para 2014? Delfim: Em minha opinião, crescer entre 3% e 3,5% no ano que vem não está fora de propósito. Isso implica em um aumento da produtividade da mão de obra. E o simples fato de estarem começando a melhorar as estradas já é injeção na veia da produtividade. O que se vai economizar de transporte da região produtora para o porto é uma barbaridade. É ganho líquido.

Valor: Os juros um pouco mais altos não podem atrapalhar isso? Delfim: O Brasil não precisa de uma taxa de juro real maior do que 3% ou 4%. É claro que, se tivermos um "overshooting" no câmbio, aí ninguém controla. Quem controla o juro é o câmbio. Mas esse cenário era muito mais provável na tempestade perfeita. De qualquer forma, se tiver um rebaixamento, não vamos ter ilusão, a resposta do câmbio vai ser vigorosa.

Valor: Em um cenário mais suave, os juros devem parar de subir agora em janeiro? Delfim: Eu saúdo a determina-ção do Banco Central de não aceitar mais dominância fiscal. O BC constrói o seu próprio indicador de superávit primário usando os seus modelos. É o BC dizendo, "eu não acredito mais, só vou fazer a política de juros de acordo com aquilo que meu modelinho está indicando". Nem o Tombini nem o Guido nem a presidente sabem o que vai acontecer. Se se comportarem bem, os juros vão ser bons. Se se comportarem mal, o juro vai subir.

Essa ideia de que o governo manda no Tombini é falsa. É só olhar para o Tombini que se vê que ele é uma rocha e vai fazer a política adequada. A despeito de todas as confusões, o BC já mostrou mais de uma vez que sabe mais do que o pretensioso setor financeiro.

Valor: O governo postergou o início da cobrança do reajuste das contas de luz com base nas chamadas bandeiras tarifárias. Ele se enrola nas tentativas de conter a inflação? Delfim: A administração de preço por preço não funciona. Ela não é produzida por isso, mas por causas muito efetivas de pressão.

Oaumento salarial acima da taxa de produtividade da mão de obra, por exemplo. Aquilo é um sanduíche com maionese. Apertou, sai maionese dos lados. Para onde vai a maionese? Ou para inflação ou para o déficit em conta corrente. Há uma inflação reprimida, ela vai ter que ser reabsorvida e, quando se fizer isso, precisaremos de políticas fiscal e monetária muito mais apertadas para eliminar os efeitos secundários.

Acho que algo como 1,5% de inflação está escondida. Para eliminar isso, é preciso deixar aparecer nos preços e ela vai dar um salto.

Mas se tiver controle, o salto para.

E a inflação se estabiliza.

Valor: Mas é improvável que o governo deixe a inflação dar esse salto às vésperas das eleições? Delfim: Não vai deixar agora.

Mas isso mostra o seguinte: que você vai ter uma política fiscal e monetária mais ajustada no futuro próximo. Vai passar 2014. A inflação namorou a banda superior por oito anos. É, inclusive, um defeito de um sistema de metas com banda. O BC sempre namora a banda superior. Mas ela não está fora de controle e não se aumentou a indexação. Agora uma coisa importante é entender por que a presidente se opôs a fazer a fórmula da correção dos preços de combustíveis. Porque aquilo seguramente era um indicador de indexação, como o salário mínimo. O governo, na verdade, está muito mais cuidadoso e percebeu o erro grosseiro que foi a política de salário mínimo.

Valor: Percebeu mesmo? Em 2015 isso terá que ser discutido novamente...

Delfim: Isso tem que ser colocado para a sociedade e provar que só se pode distribuir o que já foi produzido. Ou o que se está tomando emprestado. Mas não se pode continuar com essa política por uma razão simples: não há ninguém mais canalha do que o credor. De vez em quando ele quer receber de volta o que emprestou e aí vêm as consequências.

Eu espero que isso seja colocado no debate eleitoral, que as pessoas não tenham medo de dizer que só pode ser distribuído o que foi produzido. Quando vejo escrito nos ônibus [em São Paulo] "transporte, um direito do cidadão e um dever do Estado", penso que, para o Estado, não tem nada de graça. Na verdade, lá está escrito: "transporte, um direito do Paulo que vai ser pago pelo Pedro". Não há a possibilidade de um lanche grátis para a sociedade, só para os grupos que se apropriam do poder. Valor: Isso não é o que o prefeito de São Paulo estava tentando fazer, ao tentar aumentar o IPTU? Delfim: É preciso reformar o sistema fiscal inteiro. Não é bancar o "Robin Hood". É natural que haja reação. E é preciso fazer isso dentro do razoável. E a reação da sociedade mostra que foi demais. Mas ele vai ser julgado no fim do mandato.

E é possível que daqui a três anos a sociedade ache que foi barato.

Valor: Seria o momento de voltar a discutir uma banda de inflação mais baixa? Delfim: Se eu não cumpro os 4,5%, como é que vem um sujeito e propõe 4%? Alguém vai acreditar em uma tolice dessas? E qual a diferença, para o crescimento econômico, entre uma inflação de 4,5% e 3%? Zero. Porque não há, na verda de, nenhuma melhoria significativa na alocação de fatores com essa diferença. O fato é que é muito mais confortável eu ter uma inflação parecida com a dosmeuscompetidores.

Porque aí eu não exerço pressão sobre a taxa de câmbio nominal.

É o tipo de discussão que não tem o menor sentido hoje. É a inflação abaixo da meta que conduz à redução da meta. Quando vejo um sujeito afirmar que, para chegar a uma inflação de 4,5%, a Selic precisa alcançar 16%, eu me pergunto: de onde veio isso? Da cabeça dele, de maus modelos. É o sujeito que não sabe resolver uma regra de três, mas é capaz de resolver uma equação diferencial estocástica.

Valor: O senhor falou que a expectativa para EUA e também para o Brasil é um pouco melhor. O temor da tempestade perfeita sai de cena? Delfim: Ele não está afastado. Estamos dando como seguro que o Fed vai fazer tudo certo. A última coisa que eu apostaria é nisso. O Fed apenas começou a retirar os estímulos, você não tem ideia sobre o que vai acontecer. Só é possível falar sobre o fato que está sob seu controle. A política monetária no Brasil é feita pelo [atual presidente do Fed] Bernanke. E vai ser feita pela [futura presidente, Janet] Yellen.

O Tombini, em minha opinião, se comporta muito bem porque sabe que age em legítima defesa. O que está na nossa mão para impedir a tempestade perfeita é o fiscal. Ou fazemos um fiscal adequado ou vamos colher as consequências.

Mas o apocalipse não está nos esperando na esquina.

Valor: E as eleições? Delfim: Eu não tenho a menor ideia sobre isso. O que eu gostaria de ver era realmente um debate sério sobre os problemas nacionais.

Até agora todos estão navegando em formas genéricas. É preciso enfrentar o governo. A ideia de que o governo é feito de imbecis é falsa.

Todas as medidas que a Dilma tomou, com intervenção, por exemplo, na energia, foram feitas de uma maneira dura, mas tudo isso vai aumentar a produtividade em dois ou três anos porque estavam na direção certa. Então, os candidatos vão ter que enfrentar isso. E sem medo de palavras, principalmente explicitar as ideias com clareza.

Acho, honestamente, que a probabilidade de reeleição da Dilma é muito alta. Ela tem qualidades interessantes para administrar e é de uma seriedade extravagante.

Devíamos saber aproveitá-la.

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