terça-feira, 24 de dezembro de 2013

MÁRCIA DENSER - Deusa da literatura contra o dragão da imprensa


Escritora paulista, autora do cultuado Diana caçadora,
relata sua descrença quanto ao ambiente intelectual
brasileiro e discute o espírito de época contemporâneo


TEXTO Fred Navarro


A escritora Márcia Denser não
deixa o seu lado jornalista dormir em
paz. Por isso, assina uma das colunas
de um site conceituado, o Congresso em
Foco, onde vira e mexe está sentando
a pua nos políticos, banqueiros e
burocratas que infernizam a vida dos
brasileiros. Mas a verdade é que desde
o lançamento de seu primeiro livro,
Tango fantasma, em 1977, esta paulistana
dedica-se à literatura como poucos, e
pouquíssimas, fazem no país.
Os nomes de alguns de seus livros
são instigantes e reveladores: O animal
dos motéis, Diana caçadora, Exercícios para
o pecado. Sobre ela, certa vez, Caio
Fernando Abreu escreveu: “Márcia
Denser é uma luluzinha querendo
se fingir de Messalina”. Antes, Paulo
Francis tinha dito que ela era a única
escritora brasileira que sabia escrever.
Polêmica, invejada, respeitada, autora
de 11 livros, entre contos, novelas
e romances, traduzida em diversas
línguas, Márcia Denser também
organizou coletâneas de sucesso
que sintetizaram quase à perfeição
o universo feminino existente na
literatura brasileira nas últimas décadas
do século passado. O melhor exemplo
disso é Muito prazer, de 1982, que fez
muito sucesso aqui e foi lançado na
Alemanha e na Holanda.
Nesta entrevista à Continente, Márcia
Denser fala sobre Clarice Lispector e
Virginia Woolf, com as quais diz não
ter “afinidades eletivas”, critica o
recente Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, mete-se na polêmica entre
José Saramago e Lobo Antunes, e ainda
conta uma curiosa história sobre João
Cabral de Melo Neto.


CONTINENTE Literatura serve para quê,
mesmo?
MÁRCIA DENSER Se o escritor for
de primeira, a literatura será uma
questão de vida ou morte, porque
a literatura não é a segunda, mas
sua primeira natureza. Encarando a
literatura como a realização de um
projeto de vida, o significado original
não só permanece como também
se esclarece quanto mais e mais
vivemos e escrevemos. Se minha
vida começou com a descoberta do
universo literário, o que não existe
para mim é um significado fora desse
universo. Que não se encare isso como
excentricidade ou alienação, mas
como a necessidade de ser coerente
com um projeto de vida. Um escritor
é um ser superespecializado num
único sentido, não é exatamente
um sujeito eclético. Fazer literatura
(porque um conto não é um texto, é
uma obra de arte) implica profunda
concentração, para ele a dispersão
é fatal, por isso seu campo de ação
não é diversificado. Escrever ficção
é enxergar coisas além do espectro,
como se o resto do mundo – todo o

mundo – fosse daltônico. Quanto à
literatura em geral, indo ao centro da
questão, o que mudou foi o espírito
de época. Quer dizer, mudou tudo.
E nada mudou. Contudo, existe a
Literatura enquanto arte, cujos valores
permanecem inalterados porque esta
ocorre no plano virtual, atemporal.
Exemplos? Shakespeare, Homero,
Guimarães Rosa, Drummond.
Veja, é preciso olhar as coisas em
perspectiva: existe o teu projeto
poético que, se tudo correr bem, irá
entrar para a trama que constitui o
padrão do projeto poético brasileiro
que, por sua vez, se enlaça ao projeto
poético ocidental. Vendo as coisas
nesse âmbito, coisas do tipo “novas
mídias” ou “produção de mercado”
se esclarecem, quer dizer, passam a
ser encaradas pelo que são, e elas são
apenas meios, instrumentos e outras
coisas de somenos.


CONTINENTE Você chegou ao jornalismona contramão de quase todo mundo, não foi?
MÁRCIA DENSER Eu sou um caso
diferente. A maioria começa no jornal
e depois é que publica. Eu entrei no
jornalismo pela porta da literatura,
fui convidada por causa do sucesso
de Tango fantasma, meu primeiro livro.
Fátima Ali editava a revista Nova na
Abril e me convidou para a seção
“Nova lê livros”. Eu tinha liberdade,
mas tinha que ser objetiva, tinha que
ter a objetividade da terceira pessoa.
E trabalhei com muita gente boa,
conheci muita gente talentosa, Telmo
Martino, Giba Um, Caio Fernando
Abreu, Paula Dip, Antonio Bivar,
Carlos Brickman, Nirlando Beirão,
Walcyr Carrasco, Luiz Fernando
Emediato... A imprensa alternativa
era forte naquela época, tinha o
jornal Movimento, o Opinião, o Pasquim,
a Escrita, e as revistas Realidade, Veja.
Isso era o que havia de diferente,
era todo o movimento cultural que
estava vivo, os espaços onde se fazia
a cultura eram algo muito vivo, não
tinha internet, todos tinham que
se aventurar pessoalmente para
conseguir o que queriam. Mas depois,

aos poucos, esse jornalismo cultural,
muitas vezes investigativo, político,
foi dando lugar para esse jornalismoabobrinha,
esse jornalismo de
entretenimento, que entrou pesado e
matou o resto... A gente ainda tentou
alguma resistência, ainda tentou fazer
um jornalismo cultural de alto nível
na Interview, na A/Z, na Around, era o
pessoal que escrevia para a “minoria
ruidosa” (em contraposição à “maioria
silenciosa” da telinha), o pessoal
que fugiu dos cadernos de cultura da
grande imprensa, com suas matérias
tijolinhos-bobagem, o jabaculê que
se tinha que pagar... Se pegarmos
os cadernos de cultura de hoje e
compararmos, fica evidente como
perderam consistência, profundidade.
Lembro da Sonia Nolasco, mulher do
Paulo Francis na época, na década de
1980, em Nova York, dizendo-me:
“Eles mandam cada vez mais a gente
fazer coisas superficiais, cada vez mais
idiotas. Emburreça!”



CONTINENTE É uma geração
que não volta mais, você não
acha?
MÁRCIA DENSER Não sei,
mas acho que vai ser difícil a turma
mais nova captar o espírito da coisa.
Porque, como eu já disse, o que
mudou foi o espírito de época. Mas
é importante registrar que, para os
escritores, fechamento de jornal e de
revista é uma coisa que mata, mata
a literatura. A impressão é a de que
deram a você um avião para pilotar,
mas para se dirigir a um lugar ao qual
você não quer ir.



CONTINENTE Você disse certa vez que
Clarice Lispector e Virginia Woolf eram um
saco de ler. Explique melhor isso.
MÁRCIA DENSER Isso tem a ver mais
com minhas “afinidades eletivas” do
que com algum leviano juízo de valor,
dito por exibicionismo babaca. Deus
me perdoe, isso deporia contra mim,
pois, melhor do que ninguém, sei que
“escrever é se comprometer”, logo,
eu não passaria recibo. Descontando
algum chauvinismo latente (que
perversamente escolhe a mulher como
inimiga), o fato é que nem Clarice nem
Virginia Woolf – escritoras geniais
cujo valor é indiscutível – fazem
parte de minha “Paideia” ou literatura

de sustentação, aquelas obras e
autores que leio e releio, a exemplo
de Faulkner, Vargas Llosa, Cortázar,
Rubem Fonseca, Proust, estes, sim,
indelevelmente incorporados ao meu
DNA estilístico, à minha dicção.



CONTINENTE Machado de Assis é
recomendado para menores?
MÁRCIA DENSER Desde que a
cultura de mercado entrou com tudo,
ocorreu simultaneamente a abaixada
geral de QI, donde Machado ficou
impróprio para menores de 18 anos.

Ele é extremamente complexo para
os jovens contemporâneos, que
não têm maturidade psicológica
tampouco cultura prévia para a leitura
de Machado, para o entendimento
de Machado, para decifrar e curtir
Machado. Aí, dançou. Vai ser muito
difícil futuramente para a turma
da academia que, não obstante,
prossegue alienadamente fazendo
teses a metro sobre Machado –
porque tem medo de se arriscar e
de se pronunciar sobre os escritores
contemporâneos –, estudando
Machado impunemente, de touca,
sem conferir sua recepção entre
o público leitor atual. Eles, que
hoje se arriscam cada vez menos
criticamente, que julgam estar seguros

apostando em Rosa ou em Machado,
na verdade estão pondo em risco não
Rosa nem Machado, mas a pertinência
e a relevância da própria academia na
área das letras. Então, temos o retorno
do inconsciente colonial que confere
desde sempre ao intelectual brasileiro
o papel de “ornamento crítico da
sociedade”.



CONTINENTE José Américo de Almeida
escreveu que um romance brasileiro sem
paisagem era como “Eva expulsa do paraíso”.
São Paulo serve de paisagem, de moldura,

para romances, contos e novelas?
Márcia Denser Antonio Candido, citando
Roger Bastide, fala de um “Machado
paisagista” porque a paisagem em
Machado reflete-se nos olhos de ressaca
de Capitu. Nunca ele fala de céu e mar,
da paisagem do Rio de Janeiro, porque
estão presentes nas mulheres, aliás foi
isto que eu quis dizer quando falei que
Machado é duma extrema sutileza.



CONTINENTE Ainda existe uma literatura
regional no Brasil moderno?
MÁRCIA DENSER A rigor, tanto para
a crítica quanto para a teoria literária,
o regionalismo no Brasil existiu como
característica da produção literária de
um determinado período histórico,
entre 1930 e 1960, marcado pelos

vetores axiais “cidade” e “campo”
(cultura e natureza), e que eram a
essência da problemática do país
em formação. Foi uma literatura de
transição entre o Brasil Colônia e o
Brasil República, a realizar assim uma
espécie de cartografia da epopéia
nacional: no Norte/Nordeste com José
Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz;
no Sul, com Érico Veríssimo e outros.
E naturalmente aí resplandecem o
romance, a saga, Guimarães Rosa, este
a cobrir epicamente o Centro-Oeste e
Minas Gerais, sendo que Minas (dele)

é também quase sertão da Bahia,
ou seja, quase Nordeste. De forma
que, glosando o seu conto A terceira
margem do rio, seria preciso inventar
um quinto ponto cardeal, ou seja, o
“Sertão Imemorial”. A propósito de
Guimarães Rosa, Antonio Candido, em
seu ensaio Textos de intervenção (2002),
lembra um fato interessante: Rosa
foi um regionalista tardio e àquela
altura, nos anos 1960, os críticos já
estavam saturadíssimos de epígonos
sertanistas, tanto que Wilson Martins
registrou criticamente Sagarana com
algo assim: “Que chato, mais um
regionalista!”. A crítica foi publicada e,
posteriormente, mesmo reconhecido
o equívoco, Wilson Martins manteve
o texto original, em nome da verdade.

Como podemos ver, o regionalismo
teve o seu esplendor no Brasil
enquanto tinha razão de ser. Hoje, se
o regionalismo persiste, aparece como
“ornamento retórico” ou “pitoresco”,
cordelismos à parte, próprio dos
gêneros infraliterários, como diria
Haroldo de Campos.


CONTINENTE O escritor português Lobo
Antunes afirma que José Saramago tem uma
fama desproporcional à qualidade de seu
trabalho. Você concorda?
MÁRCIA DENSER Na minha opinião

Lobo Antunes representa um Portugal
com uma literatura de vanguarda,
política, de autoconsciência.
Independentemente da qualidade
literária e poética de José Saramago,
ele não é exatamente um escritor
representativo da pós-modernidade.
Com ele, creio que a Academia Sueca
está apenas premiando a tradição
literária portuguesa.



CONTINENTE Qual sua opinião a respeito
do recente Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa?
MÁRCIA DENSER Absolutamente
ridículo. As regras de uma língua
não se estabelecem por decreto,
uma vez que a língua viva não é uma
coisa, um objeto rígido, imutável no

tempo, mas um processo em constante
transformação. Mas as pessoas sempre
se apegam a leis e acordos escritos,
como se apegam a clichês e ideias
vazias, que não passam de letra morta.
Por outro lado, a língua viva possui
valor e substância, logo, não há por que
se apegar a ela, não é?



CONTINENTE O que fazer para crianças e
adolescentes saírem da frente da tevê e lerem
mais?
MÁRCIA DENSER Eu deixaria livros ao
alcance das crianças, mas sem forçar a

barra… Vou dar um exemplo bastante
concreto: havia uma biblioteca na
casa da minha avó, onde a família se
reunia aos domingos, em dias de festas.
Naquelas tardes remotas, modorrentas,
eu, meus primos e primas – umas 20
crianças – brincávamos, em loucas
correrias, e a biblioteca fazia parte
do itinerário. Contudo, daquelas 20,
apenas duas – eu e uma prima mais
velha – paravam e mergulhavam na
leitura daqueles volumes silenciosos,
deslumbrantes.



CONTINENTE Você esteve com João Cabral
de Melo Neto em certa ocasião. Conte para os
leitores da Continente o que aconteceu.
MÁRCIA DENSER João Cabral de
Melo Neto... Eu me lembro de que o
encontrei numa bienal de literatura
aqui em São Paulo, a Bienal Nestlé,
que premiava novos valores de
romance, poesia e conto. Ele era
membro do júri e eu estava lá fazendo

uma palestra. Também estavam por lá
o Ricardo Ramos, a Edla Van Steen, a
Lygia Fagundes Telles. Bom, no final
a gente estava para sair, mas faltava
o João Cabral, ninguém sabia dele.
De repente, levanta-se uma cortina
nos bastidores e João Cabral sai, de
gatinhas, mas com um copo de uísque
na mão, dizendo: “Pessoal, consegui
fugir…” No olhar, um reflexo de
moleque levado… Saímos e ficamos
conversando por toda a noite.



CONTINENTE A globalização continua como
um de seus temas prediletos.
“Ainda bem que
temos o Francis como
paradigma, quer dizer,
alguém de grande
porte para botar nos
devidos lugares os
jabores, mainardis e
demais aspirantes de
somenos”
MÁRCIA DENSER A
globalização acentua a
localização, as pessoas
reagem tornando-se
extremamente ciosas
da própria cidade, ficam localistas,
provincianas, assumem todo o
provincianismo que já fora superado
desde a década de 1970. Ou seja,
houve um retrocesso em toda
sociedade, por paradoxal que seja...



CONTINENTE Paulo Francis faz falta
na imprensa brasileira, ele, que disse certa

vez que você era a única mulher que sabia
escrever bem no Brasil?
MÁRCIA DENSER Escrevi em algum
lugar que “o brasileiro não só não
tem memória como antecipa o
esquecimento”, contudo, como
exceção à regra, esta frase não se aplica
à memória de Paulo Francis. Morto
há 12 anos, em fevereiro de 1997,
Franz Paul Heilborn mantém acesa
a chama em torno de uma legenda.
Francis gozou de um estatuto raro
no jornalismo brasileiro: escrevia o
que queria. Não estava a serviço dos
interesses políticos do patrão, quer
este fosse a Folha, o Estado ou a Globo.
Assim, durante décadas, graças a essa
independência de espírito, cultura
enciclopédica e estilo corrosivo,
tornou-se o maior crítico cultural
e político da sociedade brasileira.
Pessoalmente refinado, amoral,
elitista e excludente, publicamente
temido, respeitado, odiado e sobretudo
invejado, seus inimigos eram legião,
e os bajuladores idem. Insubornável.
Infelizmente não teve e parece que
não terá sucessores. Alguém como
ele não é mais possível no insalubre
contexto histórico contemporâneo.
No entanto, sua figura emblemática
continua crescendo na razão inversa
duma mídia que cada vez mais se
banaliza, acanalha-se, vende-se, perde
credibilidade, sua função de mídia.
Ainda bem que temos o Francis como
paradigma, quer dizer, alguém de
grande porte para botar nos devidos
lugares – aquela terra de ninguém entre
a irrelevância e o esquecimento – os
jabores, mainardis e demais aspirantes
de somenos. Entende-se por que as
mediocridades de plantão precisam
destruí-lo.



























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