sábado, 14 de dezembro de 2013

Existência tóxica - Inez Lemos


Existência tóxica 
 
Preocupação dos pais com a tendência dos jovens em ligar-se às tentações do vício, das drogas ao excesso de tempo dedicado ao mundo virtual, destaca a importância das referências e valores 

Inez Lemos
Estado de Minas: 14/12/2013 


Jovens, cada vez mais fissurados, se isolam em jogos virtuais: o vínculo com o objeto se transforma em dependência e sentido da vida (Frederic J. Brown)
Jovens, cada vez mais fissurados, se isolam em jogos virtuais: o vínculo com o objeto se transforma em dependência e sentido da vida

Como prevenir para que os filhos resistam às adicções – drogas, álcool, internet? A pergunta de uma mãe expõe o dilema que muitas vivem. Iniciamos pelas substâncias tóxicas. Como elas entram na vida dos jovens? É possível identificá-las como um aditivo narcísico, um ponto de apoio, um suporte. Elas chegam, muitas vezes, amparando uma crise de insegurança. Desconfiança, medo, incerteza. O mundo está cada vez mais inseguro e as profissões cada vez mais fragmentadas. Amigos, amores? Quem são? Festas ou baladas regadas a remédios controlados? Nas casas noturnas consome-se, como estimulante, Ritalina – medicação indicada no tratamento do chamado “déficit de atenção”. O ato aponta gozo em transformar o lícito em ilícito.

Prazer ou a luta incessante em escapar do vazio – pavor ao deparar com o caos interno. A dor é fato, toda faxina nas entranhas causa medo, insegurança. Ninguém amadurece emocionalmente sem enfrentar os leões que rosnam. O problema das adicções desvenda a fragilidade descomunal identificada entre os jovens. A ferida narcísica, o eu em frangalhos enlaça o parceiro – objeto que promete anular a dor de existir. E revela a necessidade de companhia na travessia. O vínculo com o objeto transforma-se em dependência. Como tamponar o buraco no meio do caminho? Se a passagem da infância ao mundo adulto e de responsabilidade não é tranquila, se a ameaça diante da autonomia os apavora, vale dizer que os jovens não estão sendo educados para assumir o duro fardo da existência?

A questão existencial caminha junto à questão cultural, uma é efeito da outra. O pensamento é resultado das condições materiais, ele não surge do nada. Vivemos a pós-industrialização. Se não há mais emoção na aquisição de objetos de consumo, outros objetos devem ser solicitados na busca por satisfação. Se o sensacionalismo está para além do consumo ordinário, exigimos, cada vez mais, algo extraordinário. Como e onde garantir sensação e excitação, quando tudo se tornou permitido?

A fissura se expande a outros campos, outros tipos de adicção – além do alcoolismo e da toxicomania. As paixões deslocaram-se. Muitas se tornaram tóxicas, o amor vampírico envolve pactos sinistros e promessas mortíferas. Como apostar em um futuro marcado pelo excesso e regado a venenos – drogas tarja preta? O olhar morto não vislumbra esperança. Todo amanhã é devir que exige garra na construção. Diferente da vida fácil, oferecida pelos pais. O barro da existência é amassado diariamente.

A fissura pelo máximo de prazer e sensação infinita provoca alguns delírios, efeito de uma falha no conceito de prazer. Presenciamos a loucura pelo fetiche, muitos são movidos pela ilusão de que estão sendo privados de um grande encontro. Logo, percebemos confusão entre prazer e adrenalina, a necessidade de se dopar e se anular com objetos maléficos. A fissura pela entrega, pela fuga, denuncia a alma mutilada.

Na era cibernética, a massa é convocada por um líder que, de plantão, controla, manipula e seduz o espaço virtual 24 horas. A sorte está lançada. Como resistir aos convites? O uso do objeto é livre. Poucos pais regulam o tempo diante das telas. Não há uma lei que proíbe o jovem de passar a noite diante de uma máquina. O viciado em redes é um adicto, como o toxicômano ou o alcoolista. O internauta não reconhece o vício, e os pais tampouco veem inconveniente na adicção virtual.

Ato repetitivo
Adicção é a compulsão por um objeto. O sujeito é dominado pelo ato repetitivo e irrefreável. Estabelece-se uma relação compulsiva – determinada pela fissura de se entregar ao objeto em total submissão. O corpo, escravo, obedece. Vários são os objetos de adicção ofertados pela sociedade atual, além das drogas de ação psicotrópica e o álcool. Podemos incluir: sexo, comida, tabaco, esportes, TV, computador, celular, trabalho, consumo, academia, jogo, entre outros. A questão não está nos objetos, mas na relação que se estabelece com eles, no uso que se faz deles. Uma vez que é utilizado de forma saudável, pontual, cumprindo apenas o papel que lhe é devido, nada a ressaltar. Contudo, quando o sujeito perde o interesse pelos outros objetos e se fixa no mesmo, direcionando a libido sempre a ele, reduz-se o campo de ação. Ocorre um empobrecimento do mundo externo e interno – uma vez que o viciado perde a liberdade de decidir entre usar ou não usar o objeto. Quando não se é livre para escolher, resta se submeter.

O psicanalista Decio Gurfinkel resgata a raiz etimológica da palavra: “O adictu era, na Roma antiga, a pessoa que, incapaz de saldar uma dívida, tornava-se escrava do credor, como forma de pagamento. Em outros termos, trata-se da antiga lenda do indivíduo que vendeu sua alma ao diabo, e ficou aprisionado e refém de seu salvador/algoz”. A relação de alienação coloca os objetos de adicção na posição de imprescindíveis. É quando ocupam o lugar da necessidade e não do desejo, provocando distorção no funcionamento pulsional. Se a relação com o objeto migra do desejo para a necessidade, constata-se uma inversão na lógica do prazer. É neste momento em que os convites se deslocam do: “Vamos sair, conversar e tomar um vinho?” para: “Vamos tomar todas?”.

A adicção, grosso modo, pode ser definida como o sintoma de um tempo em que o afeto, o pensamento e a reflexão sofrem uma atrofia. A moda é o indivíduo operacional, a tônica está na ação, nas atitudes e não nos sentimentos. Lidar com as fantasias tornou-se banal. Banaliza-se a vida interior, o foco é o desempenho. Todos são julgados pelo salário, pela profissão, pelo corpo. Pouco vale a forma que escolheram viver, se estão felizes, importa serem bem avaliados pelos auditores financeiros. Na lógica do agir, ingerir e consumir, pouco tempo resta para sentir e pensar. Meio ao excesso de teclas e botões, padece uma juventude carente de sentido. Angustiados, lutam por sobreviver ao déficit simbólico a que estão relegados.

A obsessão limita os movimentos do indivíduo, paralisando o olhar em uma só direção - congelando emoções e sensações. O sintoma do mundo coisificado é o empobrecimento afetivo e simbólico. O sangue corre para um só objeto, fazendo do obsessivo um demissionário da vida emocional. Dominado pela dúvida, procrastina, adia. Viver é apenas uma operação. Uma técnica a mais.

Pouca coisa vale além do mergulho mortífero no objeto – objeto causa de fissura. Porém, sem um ponto de basta, sem ruptura na cadeia pulsional, resta pouca esperança. Seja na impulsividade, agindo sem pensar, ou na obsessividade, deixando de agir por pensar demais, ambos acusam desajuste – dessintonia com o eixo subjetivo. A relação com o objeto de adicção sustenta o paradoxo – ao mesmo tempo em que alivia, conforta e provoca sensação de proteção, acusa, também, submissão à devoção e devoração do objeto – causado pela posição de escravo.

Sem referências
O efeito passageiro do ato adictivo o coloca na posição de objeto transitório e revela as consequências nefastas de uma relação parental frágil e danificada. O vínculo que estabelecemos com os objetos (drogas, álcool ou outros adictivos) denuncia a forma como fomos acariciados e amados pelos pais. Quando há ruído nas relações familiares, o sujeito fica exposto aos efeitos de um eu fraco, mal enraizado e carente de boas referências.

Para J. McDougall: “A necessidade de objetos externos em forma de sexualidade compulsiva ou de abuso de drogas é evidência de colapso dos processos de internalização. Os atos adictivos são incapazes de reparar a representação estragada, seja do pênis ou do seio, no que se refere à sua significação simbólica. Aliviam a angústia apenas temporariamente e, portanto, adquirem qualidade adictiva pelo fato de terem de ser continuamente buscados”.

Se somos marcados pela forma com que incorporamos vivências, afetos, se são eles que nos movem, aos pais resta o alerta: educar filhos é função que exige muita dedicação e responsabilidade. Não é tarefa para qualquer um. Muitos não querem arcar com tanto trabalho e implicação. É fundamental diferenciar o desejo de tornar-se pai ou mãe do desejo de cumprir com a paternidade/maternidade.

Se somos livres ao escolher entre ter ou não ter filhos, uma vez que os temos, o dever é oferecer boas referências, lembranças enraizadas no afeto. A criança que foi privada de uma relação boa com os pais, que incorporou fragmentos danificados, é forte candidato às adicções. O adicto é um visionário. Além de idealizar as qualidades mágicas do objeto, cria o conto de fadas para nele reinar. Quando o objeto é mais forte que ele, acaba se submetendo às suas bruxarias.

Inez Lemos é psicanalista.

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