quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Marina Colasanti - Em quantos deles?‏

Em quantos deles? 
 
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com

Estado de Minas: 05/12/2013



Foram encontradas mais três jovens mulheres mantidas em cativeiro. Três irmãs, de 12, 13 e 17 anos, aprisionadas durante dois anos em sua própria casa pela mãe e pelo padrasto. Isoladas, cada uma em um quarto, constantemente vigiadas por câmeras, privadas de banho por muitos meses e subalimentadas.

Em 1965, um filme de William Wyler fez muito sucesso e foi indicado a três Oscars. Era O colecionador, com Terence Stamp e Samantha Eggar. Um colecionador de borboletas, delicado, gentil e psicopata, apaixonado desde a adolescência por uma estudante de artes, decide acrescentá-la à sua coleção. Clorofórmio, sequestro e eis que a tem prisioneira no porão da casa isolada que comprou para isso, de onde ela tentará inutilmente fugir, e onde, adoecendo, encontrará a morte. A borboleta está retida para sempre, mas já sem as cores e a beleza, não podendo ser guardada debaixo de vidro.

Já perdi a conta e embaralhei as situações de tantas notícias com que fomos confrontados nos últimos anos. Cativeiros semelhantes estourados por denúncia ou fuga. Parece até uma epidemia. E certamente é um mal.

O colecionador do filme não estupra a moça, não tenta possuí-la, embora a deseje. Ele a respeita, talvez até para não estragar o belo espécime. Mas não é essa a norma. E porque o mais comum é que os sequestradores abusem sexualmente de suas vítimas, nos equivocamos pensando que para isso as mantêm prisioneiras.

Não há falta de mulheres para o sexo, grátis ou a pagamento. E pais abusam de suas filhas com assombrosa frequência, sem precisar, para isso, mantê-las em cativeiro. Não é por necessidade erótica que se aprisiona e escraviza uma mulher, sexo não é o movente, sexo é apenas parte importante do mecanismo de dominação.

Em meus tempos de editora de comportamento de uma grande revista, mantive durante anos uma seção em que respondia às cartas. Confidências terríveis chegavam às minhas mãos. Numa delas, uma mulher, moradora de uma pequeníssima cidade, me disse que o marido a mantinha trancada em casa, com as janelas fechadas, e não lhe dava roupas, para que não pudesse fugir. O único vestido e a única camisola da sua vida de casada eram os que havia usado para ir ao hospital ter sua filha e que o marido havia tomado em seguida. Em casa usava trapos. Já não lembro do artifício de que lançou mão para me mandar a carta. Lembro-me de que lhe disse para tentar chegar ao padre, única autoridade daquela cidadezinha que poderia ajudá-la. E que a carta não relatava nenhuma sexualidade transbordante, apenas algo semelhante ao ciúme, ou ao delírio de posse.

Durante séculos os homens foram proprietários absolutos das mulheres, propriedade que começava pelo pai, era repassada ao marido e, em caso de viuvez, cabia ao senhor. A chave da sua vida nunca lhes era entregue. Nessa sociedade aprisionadora em que trancar uma mulher dentro de casa parecia tão próximo da normalidade, não deve ter sido necessário formalizar o sequestro.

Mas ao se apropriar da chave as mulheres entraram em área de risco, pois para submetê-las plenamente tornou-se necessário o clorofórmio.

O mundo está cheio de porões. Em quantos deles uma menina ou mulher, trancada há tempos, não vê a luz do dia e se lamenta inutilmente entre paredes à prova de som?

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