quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

No outro lado do mundo - Eduardo Tristão Girão

No outro lado do mundo 
 
Sons vindos da Armênia, do Mali e do Líbano revigoram a cena instrumental. Artistas como Tigran Hamasyan, Bassekou Kouyate e Ibrahim Maalouf temperam tradições com jazz e pop 

 
Eduardo Tristão Girão
Estado de Minas: 23/01/2014


Bassekou Kouyate (de camisa roxa) e sua banda: música universal embalada pelo ngoni e pedais de distorção (Africanoz/divulgação)
Bassekou Kouyate (de camisa roxa) e sua banda: música universal embalada pelo ngoni e pedais de distorção

A interseção entre a world music e outros gêneros tem rendido belos discos, responsáveis por tirar do marasmo sobretudo a cena instrumental, já povoada o suficiente por guitarristas dominadores de escala, pianistas impecáveis e saxofonistas incansáveis. Vêm da Armênia, do Mali e do Líbano os sopros de criatividade mais recentes, realizados por artistas que, talentosamente, contaminam suas tradições musicais com linguagem moderna. Disso resultam álbuns realmente diferentes.

Nascido em Gyumri, cidade armênia próxima da fronteira com a Turquia, Tigran Hamasyan, de 26 anos, provou com seu recém-lançado disco, Shadow theater, ser mais do que um pianista consistente. Além de tocar muito bem, ele incorpora elementos da música tradicional local, temperando temas instrumentais e algumas canções com notas que fogem do lugar-comum. A exemplo de alguns de seus trabalhos anteriores, há um pouco de jazz, de rock e, mais do que nunca, pitadas de pop.

Esse tempero não é tarefa para qualquer um. No caso de peças folclóricas da Armênia, Hamasyan muitas vezes bebe na fonte da música modal – a melodia é a guia, sem mudanças de acorde. Saber criar a harmonização para composições surgidas a partir disso é um dos trunfos dele, que recentemente se arriscou nos vocais. Entre os resultados que alcançou está a linda canção The poet, que abre o novo repertório. O armênio já coleciona elogios de Herbie Hancock e Chick Corea, entre outros notáveis.

Além de se valer dos motivos tradicionais de seu país para criar melodias e harmonias, o pianista tem como característica o toque pulsante e recortado que usa para temperar várias de suas composições. Bons exemplos disso são Vardavar (vale a pena conferir o clipe da descompromissada versão ao vivo no YouTube), parte de EP nº 1 (2011) e Red hail (of pomegranate seeds), petardo do CD Aratta rebirth, em que Hamasyan reafirma seu interesse pelo rock. Quantos pianistas conseguiram soar bem sendo tão pesados assim?

África Mesmo com o pé firme nas tradições de sua terra natal, o Mali, no Oeste africano, Bassekou Kouyate deixa muito guitarrista no chinelo ao plugar nos pedais de distorção e wah wah o seu ngoni, antigo instrumento de cordas com corpo de cabaça e tampo de pele de cabra. Com outros tocadores de ngoni (uns mais graves, outros mais agudos), três percussionistas e a voz potente de Amy Sacko, ele surpreende com sua música, muito acessível. Em alguns momentos, ela soa quase pop.

Em Jama ko, seu terceiro disco, ele aposta alto na universalidade de sua música. O timbre e a articulação de notas no ngoni são únicos e fazem dele chamariz e tanto para as canções, todas estruturadas com refrão, estrofe, abertura, ponte e, claro, solo. Ao improvisar, Kouyate realmente impressiona – e não só pela rapidez. Transpor o que ele toca fluentemente em Sinaly, por exemplo, daria nó na cabeça de um guitarrista. Isso, para não falar dos ritmos, como o da sacolejante Kele magni.

A rica cena cultural do Mali já deu ao mundo artistas como o genial guitarrista Ali Farka Touré (com quem Kouyate já tocou). Ali desenvolveu um estilo próprio de tocar guitarra, cuja popularização recebeu a contribuição de artistas como Touré, verdadeiro elo entre a música de sua terra natal e o blues. Por isso é tão especial ouvir a faixa Mali koori, blues hipnótico com vocais de Zoumani Tereta e o ngoni nos solos, em vez da guitarra. Blues ancestral e em mutação.

Ibrahim Maalouf: novos caminhos para a música árabe (Eric Gaillard/Reuters)
Ibrahim Maalouf: novos caminhos para a música árabe


Válvula Do Líbano vem o trompetista Ibrahim Maalouf, que em setembro esteve em Ouro Preto e Olinda para tocar no Festival Mimo, quando aproveitou para antecipar as composições de Illusions, álbum recém-lançado. Seu trompete não é como qualquer outro: para conseguir as notas intermediárias que caracterizam a música árabe, ele se vale de uma quarta válvula – artifício criado por seu pai. Sem carregar no “sotaque”, consegue soprar melodias que remetem imediatamente à sonoridade oriental.

Instrumental, o trabalho tem no jazz e no rock seu alicerce. O arabismo é totalmente por conta de Maalouf, pois sua banda (bateria, baixo, guitarra, teclado e sopros adicionais) se concentra em formar base cheia de balanço e pressão. Conspiracy generation e Nomade slang são ótimos exemplos disso: ouvir o libanês encaixar um solo mestiço (meio jazz, meio árabe) sobre uma base ocidental é algo realmente curioso, como demonstra If you wanna be a woman. E o mais importante: funciona muito bem.


O iraniano Kayhan Kalhor apresenta o kamancheh ao mundo (Mohammad Kheirkah/divulgação)
O iraniano Kayhan Kalhor apresenta o kamancheh ao mundo

Outro lançamento do Oriente Médio que chama a atenção é Kula kulluk yakisir mi, registro ao vivo da colaboração entre o iraniano Kayhan Kalhor e o turco Erdan Erzincan. O encontro de culturas rendeu improvisações e composições de alto nível. O CD se resumiria apenas a outro ótimo álbum para amantes da sonoridade oriental não fosse o fato de chegar ao mercado pela gravadora alemã ECM, reconhecida por bancar trabalhos jazzísticos e de vanguarda. Por esse motivo, a música do duo soa ainda mais ancestral.

Kalhor se vale do kamancheh, instrumento de corda com som delicado, tocado com arco e na posição vertical. Já Erzincan domina o baglama, espécie de alaúde de corpo pequeno e braço comprido e cordas de aço reunidas em duplas ou trios. Juntos, mesclam elementos musicais de seus países de origem (como explicitado na faixa Intertwining melodies), revisitam um lindo tema (The wind) e criam intrigante frase musical de aspecto épico que reaparece em trechos das várias improvisações. Gravadas em 2011, elas parecem existir há séculos.




Confira também

» Ali Farka Touré
Referência clássica da música e da escola de guitarra africana, Touré (1939-2006) deixou ótimos discos. Um bom começo é o
CD Talking Timbuktu.

» Anouar Brahem
Além de exímio alaudista, o tunisiano, de 56 anos, está entre os melhores e mais sensíveis compositores do mundo árabe.

» Avishai Cohen
O baixista israelense, de 43 anos, mantém um pé na tradição judaica e outro no jazz moderno norte-americano. Ele se superou ao se arriscar nos vocalises do disco Seven seas.

» Lionel Loueke
Nascido no Benin, na África, formado na França e radicado nos Estados Unidos, o músico, de 40 anos, é um dos guitarristas mais originais da atualidade.

» Mulatu Astatke
O vibrafonista etíope, de 70 anos, é considerado o pai do chamado “ethio jazz”. O brasileiro Criolo, fã de carteirinha, já tocou com o mestre, que lhe entregou melodia para ser letrada.

» Thierry Robin
O violonista francês, de 56 anos, soube como poucos transitar pela cultura cigana, reunindo no ótimo disco Gitans representantes da Índia à Espanha.

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