sábado, 1 de fevereiro de 2014

A saúde, as namoradeiras e a rua‏ - Aristides José Vieira Carvalho

A saúde, as namoradeiras e a rua


Aristides José Vieira Carvalho
Médico, mestre em medicina, especialista em medicina de família e comunidade e clínica médica

Estado de Minas: 01/02/2014



Andando pelas ruas de uma cidade do interior de Minas Gerais vi nas janelas de várias casas as famosas namoradeiras, bonecas do artesanato mineiro, que “esperam pelo amor perfeito”. Dizem os estudiosos e artistas que elas são mulatas e negras para denunciar o preconceito que existe contra essas mulheres. Pois é, fiquei pensando: o que olham? São olhares doces, ora distantes, ora penetrantes, ora fantasiosos, ora reais. De longe são mulheres na janela, de perto são criações humanas, obras de arte.

Chama-me a atenção o fato de que cada namoradeira tem o seu ângulo de visão. Nenhuma delas vê a rua inteira. Quando me vem a imagem das namoradeiras na janela olhando a rua, penso nas diferentes ruas dos vários “Brasis”, com seus encantos e desencantos. As namoradeiras de Minas Gerais me fazem viajar na imaginação e ancorar meus pensamentos na área da saúde.

Muitos olhares que se voltam para a área da saúde têm a limitação do olhar da namoradeira. Conseguem ver uma parte da rua, mas não veem a rua por inteiro. Penso na beleza e no desafio da gestão dos serviços de saúde. Uma gestão benfeita, compartilhada e participativa, que utiliza o que há de mais novo e conhecido no planejamento em saúde em seus componentes estratégico-situacional e participativo, poderá trazer um novo colorido à atenção à saúde da população. Essa constatação reforça a ideia de que a construção de serviços de saúde capazes de atender de forma digna o cidadão precisa de um olhar capaz de captar os vários olhares que veem a rua.

Pois é, quando passei pela janela, percebi que estava em um ângulo que a namoradeira não mais me via. Se ela quisesse notícias minhas, teria que conversar com a namoradeira da janela ao lado. Mas as namoradeiras não conversam. Pensei comigo mesmo: se, na saúde, não buscarmos os olhares que veem ângulos que não vemos, ficará difícil dar respostas aos problemas que se apresentam. E se não houver uma abertura ao diálogo, uma humildade (tanto do “eu” quanto do “tu”) para perceber que o outro consegue ver algo que não é percebido, o olhar será limitado, sem brilho e inventará necessidades e justificativas para aqueles que estão fora do ângulo que se pode ver pela janela.

Infelizmente, interesses de alguns grupos colocam viseiras que impedem ver o entorno e as casas que fazem parte da rua. Isso acontece quando os serviços de saúde são “organizados” sem um diagnóstico criterioso e dinâmico da situação de saúde e/ou as intervenções são incoerentes, fragmentadas e deslocadas do contexto sociopolítico, econômico e cultural.

Quando reflito sobre o olhar do programa Mais médicos, penso que ele traz à tona uma preocupação real da gestão dos serviços de saúde e uma demanda antiga da população: faltam médicos em várias cidades brasileiras. É preciso agir. Mas a implementação do programa, reproduz o olhar da namoradeira. Viu por um ângulo da janela. Não viu a rua inteira. Não conseguiu ir ao fundo da questão, porque o problema não é só a falta de médicos. Vai além. A implementação do programa fez uso de um olhar que não viu as condições de trabalho, a remuneração profissional, feriu critérios, atropelou acordos e avanços costurados no decorrer dos anos. Não compartilhou com os olhares de outras namoradeiras e viu apenas uma parte da rua.

É inegável a complexidade da atividade do gestor em suas dimensões técnicas, administrativas e políticas. Tal complexidade nos leva a pensar que com um olhar isolado, que não compartilha com outros olhares a sua visão e não se permite crescer com o olhar do outro, o gestor poderá abrir frentes, mas, provavelmente, não obterá os melhores resultados. Fazer o “movimento” para que aconteça a partilha dos olhares e buscar mais saúde para o cidadão é o desafio e a beleza da gestão.

Sou um apaixonado pela arte mineira. Gosto da namoradeira. Para mim ela representa a ousadia e a criatividade de um povo que romanceia a vida e faz denúncias com sua criação artística. Desculpem-me por apresentar a limitação do olhar da namoradeira e não destacar as tantas belezas que possui.

A gestão em saúde, assim como as namoradeiras, espera o “amor perfeito”. Na perspectiva da saúde, o amor perfeito pode ser traduzido por um serviço acolhedor, humanizado, digno, resolutivo, que busca sempre mais atender as necessidades das pessoas. Já avançamos muito. Aprendemos a olhar a rua e trocar informações sobre os nossos olhares. Crescemos. Mas, como qualquer ser humano, ainda atropelamos processos. Oxalá, nessa caminhada, feita com erros e acertos, tenhamos humildade e coragem para rever os passos equivocados, fortalecer as opções corretas e abraçar olhares construídos na partilha. Assim, enxergaremos um pouco mais a rua e conquistaremos mais saúde para a nossa população.

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