sábado, 22 de fevereiro de 2014

ARNALDO VIANA » Bom dia, cavalo (final)‏

ARNALDO VIANA » Bom dia, cavalo (final)
Estado e Minas: 22/02/2014 04:00


 (Arnaldo Viana/divulgação)


Bom dia! Há um mês aqui, reverberando, dissecando a espécie humana, deveria me apresentar, pelo menos em respeito às convenções sociais. Ficaria vexado se dissesse o nome pelo qual meu patrão e dono me chama. Nemmmm... Você pode me chamar do que quiser, menos de pangaré, evidentemente. Alguém (não eu, já acostumado ao ultraje) pode se dar ao direito de interpretar como ofensa a esse animal errante, ou como objeto de constrangimento. Nego meu nome, mas posso, para não ser deselegante, falar um pouco de mim, pois não sou bicho de me esconder atrás da história. Não. Sou de biografia autorizada.

Nasci de um pesadelo. Não meu, mas de minha mãe, égua de certa linhagem. Era jovem e linda, pelo caramelado como o meu. Certa tarde, deixou o sítio no qual morava e, com duas amigas, pegou uma estradinha cercada de ipês floridos. O cio as levava ao grupo de jovens garanhões, de suposto pedigree, que pastava às margens de uma lagoa. Era o cio, algo que não tenho desde o maldito dia em que meu dono me levou àquele carniceiro de Venda Nova. Doeu, como doeu.

Voltemos à minha mãe. As três eguinhas seguiam a trilha. Cantavam uma modinha da época. De repente, algo salta da moita. Era meu pai. Soltava fogo pelas ventas de tanta excitação. Sabe aquele olhar de fêmea assustada? As três começaram a correr. Minha mãe, vaidosa como era, de ferradura de salto alto, ficou para trás. O cavalo tarado, mais que depressa, crau e crau! Um estupro, com certeza, na estradinha cercada de ipês. Nasci 340 dias depois, rejeitado pelo dono de minha mãe. Quando completei 2 anos, fui vendido. Tão barato que parecia dado. Soube de tudo isso pela boca de minha mãe. Meu pai, não conheci.

Vendido, fui arrastado de cabresto. Cheguei ao que pretendia ser o novo lar. Vi e gelei. Uma carroça me esperava. Um ano depois, arrastava-a pelas ruas. Sou indivíduo humilde. Não sou metido a bom de sela, diferentemente de conhecido meu, um cinzento. Puxava carroça no Belvedere e balançava o beiço para dizer: “Trabalho na Zona Sul. Não sou como vocês, carroçadores de periferia. Puxo material para gente chique. Nunca, nunca mesmo, vou carregar entulho e mudança de pobre. Ontem mesmo, transportei um piano de luxo, caríssimo. Tá?” Bobo. Não há nada de mais em puxar mudança de pobre. O que me chateia é cachorro. O vira-lata. Quando a gente passa arrastando a carroça, ele late e corre atrás, mordiscando nosso calcanhar. No dia da mudança, viaja mansinho lá em cima, com cara de maior inocência. Ô raiva que dá, sô!

O cinzento do Belvedere era tão metido a bom de sela que cismou de ser cavalo de polícia. “Vou acabar com a bandidagem”, dizia. Deu de se aproveitar dos descuidos do dono para descer até o quartel da PM, no Prado. Ficava lá, zanzando de um lado para outro. Quando alguma tropa saía, fazia até continência. Esperava um cochilo dos guardas para entrar. Certo dia, chamaram o caminhão da zoonose. Levaram o arrogante. Sabem o que fazem na zoonose? Metem três injeções daquelas de agulha grande no lombo do cara. Enchem a goela dele com uma garrafada amarga. Nunca mais se falou no cinzento.

Ele não estava de todo errado. Estou em vias de me aposentar. E aposentadoria para cavalo velho de periferia tem dois rumos: matadouro clandestino ou abandono. É do matadouro clandestino que vem o charque para engrossar a feijoada de sábado. Talvez seja melhor que abandono. Não sei se vocês viram neste mesmo jornal, quinta-feira: um branquelo desmaiou no Bairro São Lucas. Fraco e de barriga inchada. Não fosse uma senhora descer do apartamento, teria morrido à míngua. Foi levado pela zoonose. E é aí que está o problema do abandono: depois de cinco dias, se o dono não aparecer… Nem quero pensar.

 Vou embora. Chega de Linha Verde. Resolvi não esperar para ver os ônibus siameses subindo e descendo a avenida. Só quero deixar um recado para vocês, humanos: adotem o espírito olímpico no dia a dia e nunca nos ofendam chamando de cavalo o sujeito mal-educado ou truculento. E mulher nunca é égua. Bem, a zoonose vem aí! Fui!

>> arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br

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