sábado, 22 de fevereiro de 2014

João Paulo - Sob o domínio do medo‏

Sob o domínio do medo

João Paulo
Estado de Minas: 22/02/2014



Polícia revista suspeitos na região da Lagoinha, em Belo Horizonte, em busca de armas e drogas   (Beto Novaes/EM/D.A Press)
Polícia revista suspeitos na região da Lagoinha, em Belo Horizonte, em busca de armas e drogas



As pessoas estão com medo. A segurança, mais uma vez, está entre as principais preocupações do cidadão. Todos têm uma história para contar, conhecem alguém que passou por uma situação de violência. O que ameaçava de longe, hoje se avizinha. Somos a próxima vítima.

As notícias de crimes, antes consideradas de menor importância na economia informativa, se tornaram estrelas em todos os veículos. Há um exibicionismo da violência. A sensação de insegurança se torna um agente mobilizador da emoção e os meios de comunicação mudam seus protocolos do que é ou não notícia para atrair mais público.

Os governos também se apressam em anunciar medidas para conter os crimes. Mais polícia nas ruas, mais armamentos, novas delegacias, tecnologia. Ou seja, o cardápio convencional de enfrentar força com força, de tentar desequilibrar o jogo em favor da lei e da ordem. Num acordo tácito, não dito, parece haver um silenciamento sobre causas e direitos humanos em nome da eficiência urgente das medidas que amenizem o pavor do cidadão.

De uns tempos para cá, foram se estabelecendo duas lógicas paralelas sobre a questão da violência. A primeira é baseada em dados estatísticos, que dão o número cru, o índice real dos danos sociais causados pelo crime. A outra é a chamada sensação de segurança, uma medida imponderável, sujeita mais aos aspectos emocionais que aos fatos.

As políticas de segurança mais recentes buscam se guiar por uma combinação das duas, como se fossem a mão esquerda e a direita. Não são. Por muitos anos, o Brasil ficou refém de dados sem consistência, apurados com amadorismo e quase sempre pouco confiáveis. Com o aprimoramento da coleta de informações, ficou mais explícito o ambiente e, com isso, a base para implantação de políticas mais consequentes.

A entrada em cena da categoria de sensação de segurança pode borrar um pouco a objetividade necessária e, em alguns momentos, direcionar ações que são mais visíveis, mas nem sempre efetivas. Atividades culturais voltadas para populações de risco, por exemplo, não afetam a sensação de medo dos moradores de áreas nobres da cidade.

Além dos mitos

Há alguns mitos em torno da segurança que precisam ser enfrentados. O primeiro deles identifica violência com falta de democracia. Durante o período de exceção, parte dos cientistas sociais acreditava que, feita a transição para a democracia plena, a questão da violência estaria resolvida. A ligação entre polícia e repressão afastava ainda mais a busca de uma política de segurança, como se isso evocasse os piores pesadelos do período repressivo.

Os argumentos em favor dessa tese quase sempre apontavam a desigualdade social produzida pelo sistema e o clima de autoritarismo como causas de todos os males. O que se viu foi exatamente o contrário, em função, é claro, da complexidade crescente da sociedade brasileira. Com o crescimento de todos os tipos de crime, contra a vida e contra o patrimônio, aumentou a pressão sobre as agendas governamentais. O mais grave estava por vir.

Se o fim da ditadura não acabou com os crimes, esperava-se que pelo menos a questão dos direitos humanos fosse mais bem equacionada. Este é o segundo mito: o fim do regime militar não devolveu ao Brasil o respeito republicano às leis universais, mas coincidiu com o recrudescimento de ação de justiceiros e esquadrões da morte. Descrente da ação policial, a população passou a apoiar a aplicação direta da justiça (como se vê, a apresentadora Rachel Sherazade não é nenhuma novidade nesse cenário). A separação entre segurança e direitos humanos se tornou uma profecia autorrealizada.

Além dessas situações, contribuiu para tornar ainda mais grave a situação brasileira a grande ocorrência de crimes motivados por relações interpessoais. Nesse campo, avoluma-se a violência contra a mulher, contra as crianças e contra minorias de todo tipo. Um capítulo especial se localiza entre os jovens, principalmente os mais pobres e negros, que concentram os maiores índices de morte por causas externas no Brasil.

Por fim, o mito dos mitos é o que identifica pobreza com crime. O que todas as estatísticas provam é que a violência não vai atrás da miséria, mas da riqueza. O que se percebeu é que os modelos de crime, sobretudo os de maior impacto social, se tornaram cada vez menos polarizados em termos de classe social. O crime mostrou sua capacidade de deslocamento horizontal e vertical na sociedade brasileira. Subiu na escala social e se profissionalizou em todos os quadrantes.

Valores

Tudo isso parece apontar o dedo, como uma arma, para a consciência do cidadão comum: o que fazer? A primeira tendência, como se observa, é responder à violência com mais repressão. São as estratégias de tolerância zero, de grande impacto, mas presas ao modelo tradicional de segurança em que, para cada crime, há uma punição. Reduzir o crime a situações individuais, a serem combatidas também de forma isolada, só será eficaz se o país se tornar um imenso presídio.

A polícia e a Justiça precisam ser repensadas. E há alternativas viáveis, inclusive já experimentadas no Brasil e em Minas, que apontam para uma transformação cultural do setor de segurança. No entanto, até pela consideração antropológica e cultural das medidas, na busca de compreensão da dinâmica social e do diálogo com todos os estratos sociais, são ações consideradas menos efetivas e lenientes. Mesmo que sejam traduzidas em dados estatísticos exemplares. Mais uma vez, a fantasia da sensação subjetiva de parte da sociedade guia a política do setor.

O que vale mais: dar oportunidades de crescimento pessoal e profissional para jovens em situação de risco social ou incentivar a ostensiva ocupação das ruas pelas forças policiais? A resposta vai variar de acordo com o interlocutor e com o grupo envolvido. O que se percebe é que os programas sociais estão perdendo terreno para a cobrança por mais polícia nas ruas. A chamada sensação de segurança pode ser a tradução de um Estado policial.

Debater novos modelos de segurança significa também responsabilizar a sociedade pela preservação de valores universais. De nada vale cobrar mais força se o cidadão ensina valores antissociais para seus filhos, como a competição desmedida, o consumo como tradução de realização humana e a privatização do público como trampolim para a felicidade individual. Terá pouca eficácia social investir em segurança sem a contrapartida de políticas públicas de proteção da cidadania e de promoção dos direitos humanos.

A mais efetiva ação de segurança pública é o diálogo. A grande conquista civilizatória no campo da violência é fazer o sentimento de pertencimento superar o medo do outro. Estar na cidade como quem chega em casa. Vivemos uma sociedade cega, surda e muda em relação à diferença. Precisamos nos aproximar das raízes da violência sem a paúra da classe média ou a histeria da repressão sobre todas as coisas. Uma canção dos Racionais pode ser a senha. Mas precisamos, ainda, fazer por merecer. 

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