domingo, 30 de março de 2014

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Onde estavas em 1964?‏

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Onde estavas em 1964?
Notei uma movimentação estranha nos arredores daquele quartel


Estado de MInas: 30/03/2014


Eu estava em Belo Horizonte. Dava aulas na Faculdade de Filosofia, lá na Rua Carangola e também no Colegio Estadual. Morava em Santa Efigênia, na casa de minha madrinha Elza de Moura, a um quarteirão do quartel da Polícia Militar.
Antes de 31 março, notei uma movimentação estranha nos arredores daquele quartel. Botaram barreiras defensivas e, se não estou inventando, sacos de areia. A gasolina dos postos já havia sido confiscada pelo governo estadual.

No Rio de Janeiro, os ingênuos não sabiam de nada. Continuavam a achar que o governo desgovernado de João Goulart seria um marco histórico. Foi um marco histórico, ao contrário, Jango, desbussolado, era mal-assessorado. Tentou ignorar os parâmetros da Guerra Fria e se deu mal. Os EUA não estavam brincando. Não deixariam a experiência cubana se repetir. Como quem se joga no precipício, Jango apostou tudo em reformas caóticas: reforma rural, reforma urbana, nacionalizações etc. Não podia dar certo.

No dia 31 de março, assisti ao Jornal nacional na casa de um amigo. Quanto foi lida a proclamação revoltosa de Olímpio Mourão, comandante da 4ª Região Militar, meu amigo vaticinou: “O governo Jango acabou!”. Fiquei pasmo. Será? Eu havia ouvido o discurso de Jango naquele 13 de março na Central do Brasil e ingenuamente me dizia: “Que coragem! Isso é um estadista!”. Era jovem e fiquei ainda mais perplexo quando o professor Rodrigues Lapa, que havia fugido da ditadura de Salazar e com quem eu trabalhava, me disse lacônico no Hotel Financial, onde ele morava: “Esse governo militar vai durar 20 anos… Preparem-se”. Ele sabia das coisas.

Começaram a ocorrer as prisões. Começaram a circular as listas de pessoas procuradas, que deveriam depor e serem afastadas. O general Guedes da ID-4 era uma espécie de governador. Magalhães Pinto virou uma espécie de presidente, nomeou um secretariado com peso de ministério, estava pronto a resistir. Ele sabia que uma frota de marines americanos se aproximava de nossas praias.

Colegas que apoiavam a revolução/ou golpe andavam com braçadeiras amarelas e verdes. E isso lhes dava um poder inquisitorial. Por precaução, eu havia queimado uma porção de revistas de propaganda cubana e algum material que a União Nacional dos Estudantes (UNE) usava, como se a revolução de esquerda fosse uma fatalidade histórica. Eu havia fundado o Centro Popular de Cultura do Diretório Central do Estudantes (DCE) de BH, publicado poemas no Violão de rua. Não pertencia a nenhum partido. A experiência religiosa na adolescência havia me vacinado contra partidos políticos, outra forma de religião. Mesmo assim, quanto tentei sair do país naquele ano para lecionar na Califórnia, o Dops me informou que isto era impossível, porque eu era “comunista sem qualificação”. Ou seja, não sabiam onde me encaixar. Passei, portanto, de “inocente útil” para “inocente inútil”.

Na noite do dia 31, estava na redação do Correio de Minas, ali na Avenida Paraná, ao lado do Gabeira, Ivan Ângelo e outros. Ouvimos pelo rádio que Ademar de Barros e o general Kruel, do 2º Exército, haviam aderido ao golpe/revolução. No Recife, prenderam Miguel Arraes. Pensava-se que o 3º Exército de Porto Alegre apoiaria Jango.

Quando o jornal fechou tarde da noite (já não sei se era 31 de março ou 1º de abril), perplexos, passamos pela Praça da Liberdade. Magalhães Pinto estava na sacada. Havia fogos de artifício, champanhe, festa e comemorações. Um outro país, que desconhecíamos, havia saído vitorioso. Eles aprenderiam mais tarde, como os derrotados de agora, que não se pode governar só com uma parte do povo. Muitos estavam enganados sobre o que era povo e o que era história.

Começava então um tenebroso caminho, onde esquerda e direita se entredevoravam ferozmente. Houve erros de lado a lado. Cinquenta anos se passaram. Será necessário que toda essa geração desapareça para que se possa fazer outro juízo dessa tragédia brasileira. Os atores envolvidos, quando muito, dão seu depoimento. Lendo o que dizem, vejo como a imaginação é poderosa, inventa-se muito. A história nada mais é, às vezes, que o choque de fiçções em combate.
A situação não era nada boa. E foi piorando, piorando cada vez mais.

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