quinta-feira, 27 de março de 2014

Marina Colasanti - Garganta acima‏

Garganta acima 
 
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 27/03/2014


Ela bem que tentou me dizer “não sou feliz”, mas em meio às pessoas, às falas alheias, ao movimento com que andávamos em grupo rumo a um restaurante, não foi possível.

E no entanto, sorria muito até então, um sorriso amplo, próximo do riso. Parecia contente. Eu teria dito que estava bem, em harmonia com sua vida, seu trabalho, seu casamento. Mal a conhecia, alguns dias de proximidade ao longo de uma viagem, algumas fotos, conversas conjuntas ao redor da mesa, só isso. Pareceu-me apenas uma mulher de meia-idade, neutra, como tantas.

Mas não existem mulheres neutras da meia-idade, como tantas. Cada uma é uma, com sua carga que a vida teve tempo para tornar pesada.

Terá sido alguma coisa que eu disse ou fiz? O tempo todo deixei que ela desse o mote das conversas. Não por generosidade, certamente, mas porque me era mais fácil, estando eu com o pensamento em outro lugar, deixá-la escolher os temas que lhe fossem mais familiares. Pensava no trabalho que me esperava na volta, na crônica que teria que fazer ao chegar, ela falava de coisas cotidianas que não me exigiam empenho na resposta. Conversa sem esforço, que parecia fluir sozinha. Em algum momento, porém, alguma coisa deve ter tido um som diferente e atuado como disparador. Alguma coisa que alguma de nós duas disse varou a superfície daquele encontro sem importância e foi se cravar na viva carne dela. Sem que me desse conta, começou a sangrar.

Havia-me dito que aquele não era seu primeiro marido, embora já o fosse há algum tempo. Nem era o pai de todos os seus filhos, embora o fosse de alguns. Ela tivera um outro amor, um outro casamento, uma outra vida, que aparentemente havia deixado como a serpente deixa a pele, porque seu tempo havia passado e era hora de mudar. O marido de agora era um bom marido, assim me havia dado a entender no princípio, sorrindo aqueles seus sorrisos.

Tudo certo, então. Mas as contas podem não quadrar, mesmo no acerto.

Havia nela, percebi depois, uma tensão interna, desejosa, como se precisasse de mais espaço do que aquele de que dispunha ou de maiores emoções. Como se fosse jovem. A pele que vestia ia-lhe apertada, algo nela queria perder-se de moto nas estradas, algo pedia mais ar. E o medo não deixava.

Por que sua falta de felicidade começou a subir-lhe garganta acima não sei. Talvez por ter-me ouvido, em meio a tantas conversas, contar uma história de amor. Talvez por uma identificação que a levava, no pouco tempo de que dispúnhamos, a querer ser vista por mim como realmente era.

É uma longa história, me disse aquela noite enquanto andávamos, não vai dar para te contar. Então não conte, respondi, querendo evitar a entrega que parecia-me não caber naquelas circunstâncias. Mas ela precisava falar, mesmo que o ruído da rua não me deixasse ouvir, mesmo que tivesse que me reter pelo braço, porque eu andava alguns passos à sua frente na calçada apertada. Da longa história só colhi acenos, mínimos fragmentos, quase nada. E logo estávamos no restaurante, sentadas à grande mesa de amigos, uma diante da outra.

Só depois, cheios os copos, vi que ela chorava em silêncio, sem que os outros se dessem conta.

Da longa história que não havia conseguido me contar, o principal estava dito. 

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