quinta-feira, 24 de abril de 2014

Estudo indica que ossos mais fracos são resultado da evolução

Ossos mais fracos são resultado da evolução 
 
Ao analisar ossadas humanas dos últimos 6 mil anos, antropóloga detectou a perda da força óssea ao longo do tempo. Fenômeno teria sido provocado pelo advento da agricultura 
 
Isabela de Oliveira
Estado de Minas 24/04/2014

Esqueleto de 5 mil anos analisado no estudo britânico: a caça para a sobrevivência demandava uma estrutura corporal mais forte (Alison Macintosh/Divulgação)
Esqueleto de 5 mil anos analisado no estudo britânico: a caça para a sobrevivência demandava uma estrutura corporal mais forte


Para os homens que viveram quando o alimento vinha da caça, a inteligência não bastava. Não raro usavam a força e a velocidade para obter comida e manter longe uma das maiores ameaças daquele tempo: a fome. Resultados de pesquisa da Universidade de Cambridge (UC), no Reino Unido, indicam que o condicionamento físico desses caçadores-coletores era de fazer inveja a qualquer maratonista moderno. Segundo Alison Macintosh, autora do estudo, as diferenças têm ficado cada vez maiores. Após analisar esqueletos de pessoas que viveram na Europa Central durante um intervalo de 6 mil anos, ela constatou que a população perdeu força óssea. A pesquisadora acredita que o advento da agricultura e da tecnologia atrelada a ela está ligado a esse processo contínuo de enfraquecimento.

Os ossos podem ser comparados a arquivos pessoais, informam o sexo, a alimentação, a causa da morte e até mesmo o nível de sedentarismo de um indivíduo. Essas pistas são especialmente valiosas para antropólogos como Macintosh, doutoranda da UC. Os segredos revelados por dezenas de ossadas permitiram que ela investigasse, sobre o ângulo da arqueologia, como atividades corriqueiras modificaram a morfologia do esqueleto. “Eu sou corredora há 15 anos e, por isso, acho interessante pensar sobre como esse tipo de exercício pode ter impactado os meus próprios ossos durante meu crescimento”, complementa. Os resultados do estudo foram apresentados na Reunião Anual da Associação Americana de Antropólogos Físicos, que ocorreu no Canadá entre os dias 8 e 12 deste mês.

Durante dois anos e meio, Macintosh investigou como, há mais ou menos 5,3 mil anos, a aurora da agricultura alterou a força óssea das populações estabelecidas às margens do Danúbio, na região que hoje engloba Alemanha, Hungria, Áustria, República Tcheca e Sérvia. Os esqueletos mais antigos pertenceram a pessoas que viveram há 5,3 mil a.C., enquanto os mais recentes datam de 850 d.C. Os exemplares foram submetidos a investigações com escâneres a laser que geraram, no computador, modelos 3D de dois ossos dos membros inferiores: o fêmur e a tíbia.

As análises nas tíbias indicaram que a força dos homens diminuiu gradativamente. Para se ter uma ideia, a diferença de força óssea entre os gêneros já era quase insignificante em meados de 850 d.C, na Idade do Ferro. Macintosh justifica que o fenômeno é resultado da redução de mobilidade provocada pela agricultura, especialmente entre os homens. Corridas e outras atividades de impacto que melhoram a força óssea se tornaram menos frequentes, até que fossem completa ou parcialmente substituídas por tarefas mais especializadas e menos estressantes. As mulheres, por outro lado, passaram a trabalhar no campo e a exercer trabalhos pesados.

Os ossos da canela dos exemplares masculinos ficaram mais fracos do que os femininos em relação à flexão, à torção e à compressão. Os esqueletos de mulheres apresentaram mudanças na curvatura femoral e na rigidez torcional de 1.450 a 850 a.C., período que compreende a Idade do Bronze e do Ferro. Este, inclusive, foi o momento em que elas estiveram mais fortes. A pesquisadora considera, porém, que essas observações podem refletir realidades muito regionais. Alguns dos ossos investigados pertenceram a uma população húngara na qual as mulheres desempenhavam trabalhos físicos pesados e até participavam de guerras ao lado dos homens.

Fatores hormonais André Wever, ortopedista e traumatologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, considera a pesquisa interessante por apontar as transformações do esqueleto humano em seis milênios. Apesar disso, aponta falhas. Segundo ele, focar na agricultura como único fator para a perda óssea exclui outras possibilidades sobre as quais também vale refletir. “Enquanto 10 mulheres sofrem com osteosporose, apenas um homem é atingido pela doença. Há vários fatores hormonais, entre outros, que fazem com que elas tenham ossos mais frágeis, sendo que tudo isso é agravado na menopausa. Se você pensar que há 6 mil anos as pessoas não viviam muito mais do que 30 anos, o que fazia com que as mulheres não chegassem à menopausa, é de se imaginar que essa perda óssea poderia ter sido bem maior entre elas caso tivessem vivido mais”, cogita o médico.

A reumatologista Cláudia Marques, responsável pela Coordenação de Residência Médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, diz que os resultados não são negativos e que fazem parte da evolução humana. Ela acrescenta que não apenas os ossos, mas todo o biotipo humano mudou ao longo do tempo para se adaptar a novas condições de vida, de alimentação e sociais. “Na realidade, eu acredito que somos hoje uma ‘nova espécie’ completamente diferente dos homens de milênios atrás”, considera Marques, frisando que a teoria é uma visão particular da evolução, sem respaldo científico.

Variações regionais Resultados de pesquisas anteriores à de Macintosh indicam que há uma variabilidade regional nas tendências de perda óssea, com a mobilidade aumentando ou diminuindo de acordo com a cultura e o contexto ambiental. Uma delas foi feita por Jane Peterson, professora da Marquette University, nos Estados Unidos. Ela analisou 72 esqueletos de indivíduos da cultura natufiana — população do Mesolítico que dominava algumas ferramentas, mas ainda não a agricultura — e comparou com a ossada de 34 pessoas cujos restos mortais foram encontrados em sítios neolíticos da China. Os resultados foram publicados em 2010 no Journal of Anthropological Archaeology.

Análises de marcadores de estresse e robustez dos locais em que os músculos e tendões se fixavam foram comparados entre os dois grupos. Peterson descobriu que a população do Neolítico, que já era agrícola, compartilhava as atividades da vida rural, e o trabalho não era muito mais pesado para nenhum dos sexos. Ela verificou que a musculatura masculina se tornou bilateralmente simétrica durante esse período, o que não foi detectado entre os natufianos, uma sociedade de caçadores-coletores que habitou a região ocupada hoje pela Síria e pela Palestina. A estrutura do corpo feminino, por outro lado, exibiu simetria bilateral em ambos os períodos, uma sugestão de que as mulheres mantiveram a constituição física. “Esses padrões sugerem uma demanda de trabalho mais igual entre homens e mulheres, com possíveis reduções nas divisões de tarefas para cada gênero”, destacou Peterson, no estudo.

Saiba mais
Crescimento similar

Apesar das diferenças na força e na resistência do esqueleto, o crescimento ósseo dos humanos antigos era parecido com o dos de hoje. Quem viveu de 7,3 mil a 11.150 anos atrás tinha altura compatível com a encontrada nas populações modernas. O fato, segundo a antropóloga Alison Macintosh,  é confirmado pela comparação de esqueletos. Ela utilizou como referência estudos publicados pelo antropólogo e biólogo Colin Shaw, da mesma universidade de Alison e coautor da pesquisa. Ele comparou a força óssea de estudantes que praticam corridas em terrenos naturais com a de alunos sedentários. Shaw observou que os homens que viveram há cerca de 7,3 mil anos tinham rigidez óssea comparável à dos atletas de hoje. No entanto, três milênios depois, a força dos ancestrais equivalia à dos estudantes sedentários. 

Duas perguntas para
Francesco Carrer,
Pesquisador da Universidade de York

A agricultura provocou outras mudanças em nossos ancestrais além das descritas no estudo de Alison Macintosh?
 
A expansão da agricultura na Europa foi absolutamente revolucionária não só para a estrutura física humana, mas também para as relações sociais, a exploração do meio ambiente, a cultura e a demografia. Sabemos que existiu um processo lento de diferenciação social, com o surgimento de chefes e hierarquias. Essa organização é relacionada com a intensificação da produção, por isso, possivelmente não ocorreu entre caçadores-coletores. A agricultura e o pastoreio tiveram consequências também para a gestão da terra, que sofreu mais com o impacto humano no meio ambiente. Além disso, influenciou aspectos culturais, como o aparecimento da religião e das línguas. Todos esses fatores, em conjunto, permitiram as transformações físicas descritas por Alison Macintosh.

A dieta devia ser mais pobre naquela época e, ainda assim, as pessoas eram mais fortes. Por que ficamos mais fracos se a alimentação melhorou?

Ainda está em discussão se a agricultura e o pastoreio realmente melhoraram a nossa dieta. O que é inquestionável é que ela forneceu mais comida enquanto a população crescia. Comunidades maiores e mais complexas surgiram, e a divisão de trabalhos tornou-se cada vez mais importante. Alguns dos membros dessas comunidades, como as mulheres, passaram a desempenhar trabalhos físicos muito pesados. Isso fez com que os homens perdessem força, pois passaram a trabalhar menos. Por outro lado, a atuação no campo deixou as mulheres mais fortes. Com o avanço tecnológico, os esforços se equipararam. Estamos ficando mais fracos e gordos não por causa da dieta, mas principalmente devido às transformações socioeconômicas desencadeadas pela revolução agrícola.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário