sábado, 14 de junho de 2014

João Paulo - Quem tem medo do povo?‏

Quem tem medo do povo?
João Paulo
Estado de Minas 14/06/2014

Bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na janela do Ministério do Desenvolvimento Agrário, durante uma audiência em Brasília (Lieslei Marcelino/Reuters)
Bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) na janela do Ministério do Desenvolvimento Agrário, durante uma audiência em Brasília

Todo mundo sabe o que é democracia. Mas nem todos sabem da mesma maneira. Conceito amplo, capaz de abranger desde o regime político até a forma como o poder é exercido, a democracia tem ainda muitas tensões internas. E é exatamente isso o que torna a palavra ainda mais rica e sua prática mais estimulante.

Há a democracia substantiva e a democracia adjetiva; a primeira estabelece uma forma de governo, a segunda qualifica suas ações. Há, no interior da democracia, um polo que aponta para a ordem, com sua tradução em normas universais e republicanas; e outro que indica o conflito, com seu desejo por mais direitos e reforma permanente das instituições.

No sentido talvez mais próximo do cidadão, existe a democracia representativa e a democracia direta. Enquanto a primeira estabelece que algumas pessoas, escolhidas pelo voto, farão valer suas vontades no âmbito dos negócios públicos (da criação de leis à fiscalização do exercício do poder), a segunda cria instâncias em que o próprio indivíduo ou grupos de interesses atuam diretamente nas questões referentes à vida pública.

A representação é um princípio de realidade nas sociedades complexas (não se pode chamar todas as pessoas à praça pública para resolver as questões atinentes à vida social); a participação é a garantia de que o vínculo com a sociedade e as pessoas não se perca. Um lado alimenta o outro e o faz funcionar. Os dois, conjuntamente, respondem pelo princípio maior da democracia, como está escrito na Constituição Federal: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”.

A polêmica recente em torno do Decreto 8.243, que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS), se alimenta exatamente na incompreensão desse duplo vínculo definido na Carta Magna: somos uma democracia que mescla representação e participação. Se um dos lados falha, o outro se exacerba; sem a ação combinada dos dois o conjunto fica mais pobre.

No entanto, o que se tem visto é um jogo duro contra o decreto, por um lado, e uma ausência de defesa por outro. Para certos setores, ele limita os poderes do Congresso, abre flanco para o corporativismo e aparelhamento do Estado. Por outro lado, quem sempre teve a participação popular como instrumento prioritário de exercício da política não parece ter se empolgado com o decreto, mesmo no que ele aponta de garantia legal para ações que vêm sendo constituídas ao longo dos anos, com a rica experiência dos conselhos, das conferências, das ouvidorias e dos orçamentos participativos.

Dando nome aos bois, a oposição critica tudo na medida: da sua forma de instituição (o decreto, como se não fosse algo constitucional) ao conteúdo, atacando falsamente a PNPS como um avanço ilegítimo sobre o poder da representação. Do lado das próprias organizações populares há um silêncio que parece constrangido em razão de outras possíveis estratégias pensadas para o campo político, sobretudo o plebiscito sobre a Constituinte exclusiva para a reforma política.

A chamada grande imprensa, de forma quase unânime e vazada pelos mesmos argumentos, detonou o decreto, dando a ele um caráter de oportunismo eleitoreiro. Outra linha de combate foi o deslizamento, recheado de má-fé, que enxerga num instrumento, que decorre diretamente da Constituição, o desvio em direção a outras realidades políticas. Assim, o PNPS foi traduzido como sendo a égide dos “conselhos populares”, quando não a ponta de lança do bolivarianismo venezuelano no país. Pura paranoia e ignorância sociológica.

Parece que o decreto não foi lido. O que ele estabelece é, na verdade, um aprofundamento da democracia direta no Brasil, não a sua criação. Menos ainda o avanço sobre o terreno do Legislativo, que será parceiro imediato e necessário em sua regulamentação. A realidade da participação direta na democracia brasileira é histórica e legal, desde 1988, mas precisa ser impulsionada em razão da nova conjuntura política e, até mesmo, dos instrumentos de intervenção na agenda pública que não existiam na época da promulgação da Constituição Federal, como a rica e complexa agitação dos meios virtuais.

Os conselhos municipais, estaduais e nacional e suas conferências, em diversos setores, vêm mostrando que há um rico tecido participativo organizado, que soube intervir na elaboração, deliberação e acompanhamento das políticas em vários setores, como saúde, assistência social e juventude, por exemplo. No entanto, mesmo regulamentados e ativos, esses instrumentos não dão conta de todo o potencial de participação exigido pela democracia contemporânea. O cenário, como todos sabem, é de crise de representação.

Avanço e polêmica É sempre curioso o jogo finório que se estabelece quando se analisam as crises. Os movimentos de junho, que completam um ano, deixaram poucas unanimidades entre os intérpretes – já que todos quiseram se assenhorar de sua força e se afastar de seus aspectos mais polêmicos –, entre elas, com certeza, a ideia de que a política tradicional “não nos representa”. No entanto, bastou cogitar em reforma política para que a máquina do mundo, como no poema de Drummond, se fechasse ao engenho das mudanças.

Crise de representação, um fenômeno mundial, tem muitas origens, desde o esgotamento das formas convencionais da política frente à globalização e aos efeitos da comunicação em rede até a nova postura psicológica do cidadão, que teve seu tempo político acelerado. Ninguém quer saber mais de esperar a próxima eleição, há um sentido real de urgência que cobra mudanças em ciclos menores, de acordo com as demandas apresentadas pelas pessoas e grupos em processo permanente de ampliação de direitos.

Além disso, há um descompasso cada vez maior entre o que o cidadão deposita com seu voto e o resultado da atuação do político de seu representante. Mesmo supondo que há uma identidade ideológica madura em torno das grandes questões, há temas que fogem a esse padrão, exigindo respostas mais ágeis, que vão além da temporalidade do jogo político.

Em algumas situações, a representatividade é colocada em segundo plano em razão de pressões mais diretas, que não estão previstas no jogo político. Um bom exemplo foi o afastamento do deputado Marcos Feliciano da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A cidadania ativa não pode esperar o cronos tinhoso e manhoso dos arranjos partidários. Há valores igualmente democráticos e muito mais urgentes em jogo. A nova proposição é a seguinte: a sociedade deve pautar a agenda política, não ser pautada por ela.

O que o decreto que institui a Política Nacional de Participação Social propõe é um diálogo respeitoso entre o Estado e as várias instâncias da sociedade organizada. É também bastante curioso que uma das linhas de oposição parta exatamente da negação de legitimidade da participação social. Assim, a mesma sociedade que se diz democrática, porque tem cidadãos participantes, discrimina o ativismo desde que não venha do momento eleitoral, que emite um cheque em branco resgatável em quatro anos.

De uns tempos para cá, sociedade civil organizada passou a ser vista com desconfiança, longe do otimismo nela depositado no período de luta contra a ditadura e transição democrática. Duvida-se de sua honestidade, formas de financiamento, condução, presença ideológica dominante, capacidade de aparelhar interesses de minorias, corporativismo. Nada menos democrático. Desconhecer o potencial das organizações populares é fechar canais de negociação e ampliação dos interesses da sociedade.

De acordo com o decreto, haverá um incentivo para que as instâncias de governo criem formas de diálogo e presença da sociedade na definição das ações que dizem respeito a cada setor. A forma como a atuação dos cidadãos, ONGs, conselhos, movimentos, coletivos e outras organizações vão ser incorporadas ao processo passa pela regulamentação legislativa. Não há subordinação ou substituição de funções, mas complementaridade. No âmbito da sociedade organizada, o desafio é exatamente ampliar seu potencial de representatividade e legitimidade. Todos vão precisar amadurecer e melhorar. Vai dar trabalho.

Por fim, há que se reconhecer a incapacidade parlamentar em torno de certos temas, que representam interesses muito fortes do sistema hegemônico, e que capitalizam recursos para a eleição de parlamentares em todas as instâncias. Bancadas de ruralistas e de representantes de construtoras e mineradores, por exemplo, serão sempre impermeáveis a medidas que firam seus interesses de origem, como reforma agrária, controle de transgênicos e agrotóxicos, autorização para mineração em terras indígenas ou de preservação, apoio à mudança da matriz energética e de transporte no país, entre outras. Nesses casos, a intervenção terá que vir da sociedade, por meio de confronto ou de campos sistemáticos de negociação, como previstos no decreto.

Para os acusadores da inspiração venezuelana, basta consultar o edifício político de países insuspeitadamente liberais, como Estados Unidos, Inglaterra e França, para identificar suas formas próprias de incorporação da participação popular na definição e acompanhamento de projetos de interesse público. São ideias bem diferentes das expressas no decreto brasileiro, mas que mostram a mesma preocupação com a proximidade do controle do cidadão, além das instâncias do Legislativo.

Para quem acha que o decreto é perigosamente esquerdista, talvez fosse bom ir à fonte. Ao contrário do que muita gente pensa, Marx sempre desconfiou do Estado sem a seiva da sociedade. Para ele, havia uma falta de conexão entre as duas instâncias: as pessoas eram abstratamente iguais, mas viviam situações absolutamente desiguais no dia a dia. O grande objetivo do pensador era acabar com esse abismo política e vida. Para isso, era preciso que as pessoas, homens e mulheres, reivindicassem na prática o que o Estado lhes tirava a todo momento. O nome que ele deu a essa fusão de vida e política foi democracia. Não seria muito diferente do conceito de um liberal empedernido que, como Marx, assinaria embaixo da seguinte afirmação: a vida em sempre em primeiro lugar.

Para quem pensa que participação política é festa, da qual apenas a minoria de esquerda conhece a fórmula, aqui vai a má notícia. Democracia dá trabalho, cobra presença, disputa de ideias e projetos. Acima de tudo, honestidade de propósitos e organização. O limite do Decreto 8.243 não é seu objeto – a presença da sociedade nas ações de Estado –, mas sua eficácia. Só vai dar certo se a democracia passar a fazer parte do DNA do brasileiro. Pelas reações da direita e descaso da esquerda, a tarefa é árdua.

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