domingo, 31 de agosto de 2014

BASTIDORES DA CRIAÇÃO

BASTIDORES DA CRIAÇÃO » Nas malhas do tempo Composta por Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, Desenredo surgiu de lembranças mineiras e da literatura de Guimarães Rosa. Para os autores,mistérios se escondem entre versos e acordes


Ana Clara Brant
Estado de Minas: 31/08/2014


Paulo César Pinheiro diz que seus versos remetem ao sertão de Minas Gerais (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Paulo César Pinheiro diz que seus versos remetem ao sertão de Minas Gerais

Dori Caymmi revela que a canção descreve Minas sem falar de Minas (Sesc/divulgação)
Dori Caymmi revela que a canção descreve Minas sem falar de Minas


O Estado de Minas publica série que conta como foram realizadas algumas das mais importantes obras da cultura mineira e brasileira. As reportagens mostram a gênese da ideia, as curiosidades da produção, as dificuldades enfrentadas pelos realizadores e o legado para a arte nacional. O passo a passo de obras-primas da música, do cinema, da dança, da literatura e do teatro.

Torcedor do Fluminense, o cantor e compositor Dori Caymmi sempre gostou de bater uma bolinha com os amigos. Por conta da “fatalidade” ocorrida numa dessas partidas, acabou surgindo Desenredo, obra-prima da MPB, parceria dele com Paulo César Pinheiro.

Em 1976, numa dividida, o filho de Dorival Caymmi acabou estourando o tendão  calcâneo e se viu obrigado a ficar de molho durante algum tempo. “Cheguei até a operar. Deprimido, tive raiva do mundo. Meu pai, que era um homem muito sábio, tomou uma decisão. Disse assim: ‘Coloquem o violão do lado dele, porque de repente o Dori se acalma’. Não deu outra”, lembra o músico.

Como ficava na cama o dia inteiro, o cantor, então com 33 anos, passou a dedilhar o velho amigo violão e começou a se lembrar dos tempos de estudante em Cataguases, na Zona da Mata mineira, onde morou dos 12 aos 14 anos. Bateu a saudade de Minas. Vieram à cabeça os amigos do colégio projetado por Oscar Niemeyer, os professores e a cidade, sempre muito receptiva.

“Deu aquela nostalgia. Quando veio tudo isso à memória, comecei a fazer os primeiros acordes de Desenredo. Além do mais, estava lendo Guimarães Rosa e me lembrei de uma música que minha mãe sempre cantava no Natal, que remetia aos hinos de Ouro Preto. Foi assim que surgiu o refrão ‘Ê Minas/ Ê Minas/ É hora de partir/ Vou-me embora pra bem longe’”, explica Dori. Ele se considera 33,3% baiano, 33,3% carioca e 33,3% mineiro: nasceu no Rio de Janeiro, tem pai de Salvador e a mãe, Stella Maris, é de Pequeri, no interior de Minas.

Assim que se recuperou, Dori Caymmi mostrou a composição ao amigo Paulo César Pinheiro, a quem encarregou de colocar a letra. Até hoje, Pinheiro considera a canção “um verdadeiro mistério”. Ele explica que os versos não se referem a nenhum lugar específico do estado. À medida que foi escrevendo, imagens mineiras foram passando por sua cabeça. “Vinham as lembranças dos sertanejos, daquelas pessoas de beira de estrada sentadas naquelas casinhas. Você passa por uma casinha e, dali a 15 minutos, passa por outra. Lugares como Sabará, São João del-Rei. Tudo isso surgia, muitas imagens se atropelando, como no verso ‘Por toda a terra que passo/ Me espanta tudo o que vejo’”, observa.

O mistério, segundo o compositor, está justamente aí: “Quando canto, é como se descrevesse o estado mineiro, sem falar dele. Não falo de um lugar, mas tem alma mineira ali. Em nenhum momento há referência a Minas Gerais. Só no refrão, por isso é misterioso. Tenho outras músicas que até falam muito mais do estado. O interessante é que Desenredo me trouxe coisas muito boas”, comenta.

Uma delas foi a Medalha da Inconfidência, a comenda mais importante concedida pelo governo mineiro, dada a ele e a Paulo César. Desenredo ficou em segundo lugar no concurso popular que escolheu as músicas que melhor representam o estado. A eleita foi Peixe vivo. “Perder para ela é normal, né? Chegar a vice foi muito bacana. Os mineiros assumiram a música como se fosse um hino deles. Tem um veneno nessa canção que pega no coração do povo das Gerais”, acredita.

Inspiração Guimarães Rosa, o autor preferido, influenciou Paulo César Pinheiro. Ele ficou tão apaixonado pela obra do mineiro que conseguiu decodificar rapidamente aquela linguagem. “De tanta paixão, acabei assimilando aquela maneira de escrever. Rosa me ensinou a amar o sertão mineiro; foi a partir da literatura dele que procurei saber tudo. Conheci Minas em seus livros e só depois fui conhecê-la in loco. Quando me casei com a Clara, ela desbravou muitos lugares comigo”, revela o compositor, que foi marido da cantora Clara Nunes (1943-1983).

O nome, sugestão do próprio Pinheiro, surgiu aleatoriamente. Desenredo dá ideia de desembaraço e desenlace, como se se desenredasse uma teia. “Inclusive, digo isso como se estivesse desembaraçando o fio do tempo, à medida que ia passando por lugares centenários de Minas Gerais”, explica.

Composta em 1976, a canção só foi gravada quatro anos depois pelo próprio Dori. Ela ganhou versões nas vozes de Boca Livre, Nana Caymmi, Edu Lobo e Roberta Sá, entre outros. “Um incidente fez nascer uma beleza dessas, uma poesia. A vida e a arte têm dessas coisas”, resume Dori Caymmi.


• TRAJETÓRIA

» Ao jogar futebol, Dori Caymmi rompe o tendão calcâneo, em 1976. Foi obrigado a ficar imobilizado por alguns meses.Para animá-lo, o pai, Dorival Caymmi, coloca um violão a seu lado
» Dedilhando o violão, Dori se lembrou dos tempos de colégio em Cataguases, na Zona da Mata mineira, e cria os primeiros acordes e o refrão de Desenredo
» Recuperado, ele mostra a melodia para Paulo César Pinheiro, a quem pede para letrá-la
» Influenciado por Guimarães Rosa, Paulo César conclui a canção
» Em 1980, Dori Caymmi lança a primeira gravação de Desenredo
» Desenredo fica em 2º lugar num concurso popular para escolher a música mais querida dos mineiros. Perdeu para Peixe vivo


•  A CANÇÃO

Por toda terra que passo
Me espanta tudo o que vejo
A morte tece seu fio
De vida feita ao avesso.

O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego
Eu me enredo
Nas tramas do teu desejo.

O mundo todo marcado
A ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do novelo.

O olhar que assusta
Anda morto
O olhar que avisa
Anda aceso.

Mas quando eu chego
Eu me perco
Nas tramas do teu segredo.

Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe.

A cera da vela queimando
O homem fazendo o seu preço
A morte que a vida anda armando
A vida que a morte anda tendo.

O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego
Eu me enrosco
Nas cordas do teu cabelo.

Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe.

. De Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro

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