sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Carlos Herculano Lopes - Novos companheiros de jornada‏

Novos companheiros de jornada
Carlos Herculano Lopes - carloslopes.mg@diariosassociados.com.br
Estado de Minas: 01/08/2014


Obra do israelense Etgar Keret lembra Kafka e Woody Allen (Wojtek Radwanski/AFP)
Obra do israelense Etgar Keret lembra Kafka e Woody Allen

A Festa Literária de Paraty, a Flip, que vai até domingo na charmosa cidade do litoral fluminense, é sempre motivo de atenção. Num tempo marcado por tantas celebridades instantâneas, é bom ver a literatura assumir posição de destaque. Para quem gosta de ler, o melhor da festa fica mesmo por conta da revelação de novos autores. A cada ano, ao lado das figuras de ponta, a Flip se encarrega de revelar autores estrangeiros que ampliam
nossas referências literárias.

Este ano, com curadoria de Paulo Werneck, jornalista jovem, mas experiente em assuntos literários, filho do escritor Humberto Werneck, a rapaziada da Flip promete muito desatino. Antecedendo a programação, as editoras se encarregaram de lançar alguns autores, despertando a curiosidade do leitor e o sentimento de encontrar companheiros de jornada. Ler histórias é uma forma de procurar novos amigos para aprender e trocar ideias.

Entre as mesas que serão realizadas em Paraty, uma chamou a minha atenção: “A verdadeira história do paraíso”, com os escritores Pablo Villoro e Etgar Keret. A ideia do organizador é muito boa: buscar em autores de outras culturas possíveis utopias para nosso mundo tão globalizado. É claro que há certa ironia nisso tudo. O que o mexicano Villoro e o israelense Keret têm a oferecer não é o melhor dos mundos, mas o mundo complexo e diverso que nos é dado viver. Fui atrás dos livros que eles lançam em Paraty e fiquei impressionado com o que li.

Juan Villoro é hoje o mais importante dos autores mexicanos. Seu romance Arrecife, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras, é forte como uma dose de tequila. No México contemporâneo, ricos entediados de várias partes do mundo procuram um resort de luxo, situado na imaginária Kukulcán, para viver experiências radicais. Em vez de luxo, águas paradisíacas e mulheres lindas, os pós-turistas estão em busca de aventuras, que incluem sequestros, tráfico de drogas e outras violências – tudo, é claro, encenado por atores.

Qualquer semelhança com os turistas que sobem as favelas brasileiras não é mera coincidência. Nesse cenário, um crime de verdade altera o rumo das coisas e o livro se torna um thriller policial. Villoro, na aparente loucura de sua história movimentada, protagonizada por roqueiros decadentes, coloca em evidência a complexidade de seu país, com políticas de combate às drogas que matam na casa dos milhares e criam atmosfera de medo que hoje define a sociedade mexicana.

Colega de mesa do mexicano em Paraty, Etgar Keret vem sendo comparado a seu conterrâneo Amós Oz, o que, convenhamos, é uma honra. Mas o escritor merece mesmo a atenção, sobretudo num momento como o atual, em que seu país se encontra no coração dos debates mundiais sobre guerra e paz em razão dos conflitos com os palestinos. Keret nasceu em 1967 e tem obras traduzidas em 35 países. Por causa da Flip, a Rocco está lançando no Brasil o livro de contos De repente, uma batida na porta.

As histórias de Etgar Keret, para ficar no terreno das comparações, lembram Kafka, pela naturalidade com que tratam o absurdo, e Woody Allen, pelo humor que ri de si mesmo. O escritor lida bem com o nonsense e o fantástico, como é próprio da tradição judaica de contar histórias. Tem até um motorista que só dirige de olhos fechados, um mentiroso que leva chutes na canela a cada mentira e um menino que escolhe cuidadosamente o que levar nos bolsos. Há algo de trágico e um tanto de compaixão nas histórias de Keret.

 Os paraísos de Etgar Keret e de Pablo Villoro são mesmo muito particulares. Não sei se queria viver neles, mas a leitura de seus livros me deu novos companheiros de jornada. Se a Flip serve para isso, acho que sua principal tarefa já está cumprida. 

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