domingo, 24 de agosto de 2014

Mudanças climáticas devem agravar doenças já existentes, diz especialista

Variações extremas de temperatura causam problemas respiratórios e doenças relacionadas às condições hídricas, como a diarreia


Paloma Oliveto
Estado de Minas: 24/08/2014

Rua de Manaus inundada pela cheia do Rio Negro em 2009: enchentes favorecem aumento dos casos de leptospirose (Michael Dantas/A Crítica/AE)
Rua de Manaus inundada pela cheia do Rio Negro em 2009: enchentes favorecem aumento dos casos de leptospirose


Os perigos que as mudanças climáticas representam para a saúde humana não são fáceis de enxergar. Diferentemente da clássica imagem de um urso-polar tentando se equilibrar no que restou de uma geleira do Ártico ou da fotografia aérea de um rio sugado pela seca, os impactos das variações extremas de temperatura e precipitação sobre o organismo são praticamente invisíveis: partículas poluentes sendo aspiradas, bactérias e vírus invadindo o corpo, mosquitos milimétricos depositando agentes patógenos na corrente sanguínea.

“As mudanças climáticas não causam novas doenças, elas agravam as já existentes”, esclarece o médico Ulisses Confalonieri, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. No Brasil, enfermidades transmitidas por vetores e pela água são os principais riscos, pois, em um país tropical com 4,5 milhões de quilômetros de floresta, males como dengue e hepatites já têm impactos significativos nas estatísticas de morbidade e mortalidade. Além disso, o Sistema Nacional de Informações de Saneamento 2010 indica que 19% da população não têm acesso a água tratada e 54% carecem de coleta de esgoto, o que aumenta o risco de contaminação de fontes hídricas e, consequentemente, das doenças associadas a esse problema.

Com o crescimento populacional, o desenvolvimento urbano desordenado e a inexistência de uma vacina, a dengue é considerada uma das mais importantes doenças vetoriais que afetam o país. Uma simulação do Programa de Computação Científica da Fiocruz e da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da mesma instituição, constatou que, no Rio de Janeiro, o acréscimo de 1ºC na temperatura mínima do mês pode aumentar em 45% o número de casos da doença no mês seguinte. Ao mesmo tempo, 10mm a mais de precipitação no estado farão crescer 6% a quantidade de casos de infecção nos 30 dias posteriores.

Coordenador do Observatório Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da sub-rede de saúde da Rede Clima, o pesquisador Christovam Barcellos deixa o aviso: com o aumento de temperatura previsto para as próximas décadas — na América do Sul, até 2100, o acréscimo será entre 1,7 grau e 6,7 graus —, os casos de dengue crescerão em boa parte do país. “Toda cidade acima do estado de São Paulo terá de se preparar para os surtos”, alerta. “É automático. Um verão úmido seguido de calor leva aos surtos de dengue.” 

Esses impactos não serão percebidos apenas no futuro. Alguns já podem ser sentidos, indica Barcellos. “Em Manaus, todo ano, o Rio Negro sobe e desce. De uns tempos para cá, ele está subindo mais. A água está entrando nas casas das pessoas que moram perto do rio; ela não escoa, então aumentam os casos de diarreia, leptospirose e hepatites”, relata o pesquisador. Em São Paulo, um levantamento do Centro de Vigilância Epidemiológica do estado mostrou que, após as enchentes de dezembro de 2009, houve um aumento de 51% nos registros de leptospirose se comparado ao mesmo período do ano anterior. Mais casos como esses podem ser esperados: alterações na temperatura e nos padrões de precipitação vão aumentar a ocorrência de desastres naturais em todo o globo.

Poluição As enfermidades transmissíveis não são o único motivo de preocupação para o brasileiro. As mudanças climáticas potencializam outro problema ambiental provocado pela ação humana, com graves consequências para a saúde: a poluição atmosférica. De autoria de Christovam Barcellos, o relatório “Mudanças climáticas e ambientais e seus efeitos na saúde: cenários e incertezas para o Brasil”, publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e pelo Ministério da Saúde, afirma que as condições atmosféricas influenciam o transporte de poluentes. “Os efeitos das mudanças climáticas podem ser potencializados, dependendo das características físicas e químicas dos poluentes e das características climáticas, como temperatura, umidade e precipitação”, diz o texto.

Em São Paulo, o pediatra e virologista Saulo Duarte Passos, professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí, percebeu, há tempos, que os problemas respiratórios aumentaram nas crianças, à medida que o clima se alterava. “Temos notado, nas últimas décadas, uma mudança no padrão das infecções do trato respiratório (IRA). Em São Paulo, observamos as quatro estações num dia. O sistema respiratório da criança se desenvolve plenamente dos 8 aos 10 anos, o que o torna bastante vulnerável às agressões externas”, conta. 

Isso o incentivou a investigar se a poluição e o clima estavam associados ao aumento dos casos. O resultado do estudo, uma revisão de artigos científicos produzidos entre 2002 e 2012 citados por cinco bancos de dados médicos, foi publicado na última edição da Revista da Associação Médica Brasileira. Passos concluiu que há informação suficiente para associar as enfermidades respiratórias pediátricas às mudanças climáticas. “Orientei duas dissertações de mestrado para responder a essa pergunta e o resultado é que sim. Quando há uma queda brusca de temperatura, aumenta de duas a quatro vezes a frequência de infecções pelo vírus sincicial respiratório, principal responsável pela bronquiolite viral aguda (BQT)”, revela.

As consequências incluem uma sobrecarga nos serviços de saúde. “Segundo dados do SUS, em 2009, foram registrados mais de 29 mil casos de hospitalizações por bronquiolites a um custo imenso para o sistema de saúde. Nos Estados Unidos, esse vírus foi responsável por 220 mil internações por BQT”, revela Passos. “A literatura mostra que, quando ocorre mudança climática, aumenta a ida aos pronto-socorros. Em nosso serviço, notamos isso em dois dias. Se hoje mudou o clima, pode contar que, em 48 horas, haverá um numero maior de atendimento das infecções, bem como dos casos de sibilância, o chiado no peito”, diz o médico. 

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