domingo, 7 de setembro de 2014

Velhos de guerra

Produtores e músicos de BH recorrem a equipamentos antigos para obter sonoridade especial. Gravadores de rolo, microfones jurássicos e amplificadores valvulados resistem à onda digital


Eduardo Tristão Girão
Estado de MInas: 07/09/2014



Anderson Guerra exibe um dos tesouros do estúdio Bunker: o microfone usado por Silvio Caldas  (Beto Novaes/EM/D.A Press)
Anderson Guerra exibe um dos tesouros do estúdio Bunker: o microfone usado por Silvio Caldas
Falar em som “quente”, “gordo”, com mais “profundidade” e maior “detalhamento” pode soar um tanto abstrato. Entretanto, como descrever as impressões deixadas por antológicas gravações de Frank Sinatra, John Coltrane ou de artistas da Motown? Isso é – e sempre será – difícil de definir, mas nem por isso os músicos deixam de perseguir sonoridades imortalizadas décadas atrás e que, pelo visto, continuam muito atuais. Para alcançar o resultado idealizado, vale usar instrumento antigo, amplificador valvulado e até mesmo renegar as facilidades dos equipamentos digitais.

Na cena de Belo Horizonte e arredores, parece não haver melhor exemplo do que o estúdio Bunker. Instalado na casa do guitarrista e produtor musical Anderson Guerra, em Nova Lima, é um dos poucos no país (se não for o único) a operar exclusivamente com aparelhos analógicos. Estão lá, e funcionando perfeitamente, microfones de época, gravador de rolo, pré-amplificadores de anos atrás, amplificadores valvulados e a mesa de som sem qualquer recurso digital. Não há computador, mouse ou pendrive. É tudo feito no braço, literalmente. O resultado final, claro, é sempre um disco de vinil.

“Os equipamentos digitais são uma superferramenta. Não sou fetichista com o analógico, nem sou radical em relação ao computador. A produção de lixo virtual não é um caminho que me interessa. Na produção, não tenho como comparar 15 canais de bateria para escolher um depois. Nesse caso, o excesso de possibilidade na arte tira a força do registro”, afirma Guerra. Responsável pelo Bunker, ele trabalha demoradamente com um artista por vez, envolvendo-se em todas as etapas de cada álbum – da seleção de repertório à capa.

O envolvimento de Guerra com a causa analógica se tornou mais forte quando percebeu que, para obter os sons que queria, teria de “caçar” os equipamentos e aprender na marra a fazer a manutenção de cada um deles. Foi assim com o gravador de rolo Tascam com 24 canais que veio do Rio Grande do Sul, com o microfone RCA 44 (usado por Silvio Caldas) e com o pré-amplificador valvulado que escorava a porta de uma loja na Rua dos Carijós, no Centro de BH. “Tudo aqui foi comprado por preço abaixo do que vale, a maior parte das coisas estava em estado lastimável”, conta.

Guerra já atendeu Somba e Deco Lima, atualmente está com Paralaxe em estúdio e já tem agendadas produções com Maurício Tizumba, Pererê e Gleison Túlio. “Era uma coisa de nicho, mas o interesse pelo analógico vem crescendo”, diz o produtor. Isso é mais do que mera opção estética: “O que me atrai é o processo como um todo, o tempo das coisas. É como comparar a preparação para fazer um vídeo e para rodar cinema. Aqui, não tem tela de computador para olhar, os músicos devem se ouvir para sentir o que está sendo tocado. Trabalhar com essa ideia de limitação é muito saudável”.

Os microfones são o ponto-chave nas gravações. “Evito equalizar na mixagem, tento chegar aos sons que quero já na gravação. Às vezes, gasto muito tempo com isso, buscando com o artista a melhor posição para um microfone”, explica. Um deles chegou a ser apelidado pelos clientes de “joia da coroa”. Trata-se de um Neumann Telefunken U-47, o mesmo usado por Frank Sinatra e pelos Beatles. “Ele tem som vivo. Costuma-se dizer que é mais parecido com o real do que a própria realidade”, brinca.

Fotografia Como descrever os sons é tarefa ingrata, nada melhor que recorrer a quem sabe traduzir para o leigo a diferença que um equipamento antigo pode fazer. Com a palavra, Sânzio Brandão, luthier e guitarrista da banda Cálix, que gosta de usar amplificador valvulado: “Me encanta fazer um acorde e ouvir a riqueza sonora, a beleza timbrística que um equipamento desses possibilita, ao contrário dos amplificadores transistorizados. É como ver a foto de uma pessoa: primeiro com a paisagem ao fundo embaçada, e depois com tudo nítido ao redor”.

Por causa da dificuldade de manutenção, Sânzio havia parado de usar os valvulados. Só voltou a trabalhar com eles depois de conhecer os amplificadores produzidos por Fernando Maciel, também de BH, que constrói um modelo de acordo com as especificações pessoais do guitarrista. “Quando o músico se sente bem com o que está usando, pode trilhar caminhos que talvez não escolhesse se tivesse outro tipo de equipamento”, conclui Brandão.

O produtor Chico Neves adora misturar equipamentos digitais e analógicos (Beto Novaes/EM/D.A Press)
O produtor Chico Neves adora misturar equipamentos digitais e analógicos


Questão de gosto


Com maior ou menor fervor, produtores e técnicos de som de BH defendem o uso das tecnologias analógicas. Dirceu Cheib, um dos fundadores do estúdio Bemol, é um dos entusiastas do passado. “Som depende de uma boa sala e bom microfone, não de computador. O digital tem facilidades, mas não significa que é melhor”, diz. Ainda que use o programa Pro Tools (para gravação e edição no computador), ele não abre mão de reverb de mola, pré-amplificadores valvulados e de um compressor com quase meio século de bons serviços prestados à música da cidade.

Além de vocalista e guitarrista da banda Transmissor, ícone do indie rock mineiro, Leonardo Marques mantém estúdio na capital. Estão lá um gravador de rolo de oito canais, teclados antigos e um pré-amplificador dos anos 1970. “Respeito a música. Não deixo de usar efeito digital por não ser analógico. É preciso saber escolher a ferramenta de acordo com o resultado a que se quer chegar. Os microfones antigos dão colorido especial ao som”, conta. Ao Pro Tools ele só recorre para rascunhar canções, optando pela dinâmica de gravação analógica como forma de obter melhor performance num único take.

Experiente produtor (Paralamas, O Rappa, Lenine, Skank e Los Hermanos), Chico Neves, que voltou para Belo Horizonte há cerca de um ano, gosta mesmo é de misturar digitais e analógicos. “É como se fossem instrumentos com timbres diferentes, mais ou menos como a opção por ouvir vinil ou CD. Se é analógico ou digital, não importa. É preciso saber navegar nas duas águas. É ótimo ter a facilidade da edição digital depois de um registro analógico”, afirma. Para ele, a interação com equipamentos antigos ajuda a criar clima no estúdio, local considerado “frio” por muita gente.

 (Ricardo Laf/divulgação)

NA ACADEMIA


Guitarrista do grupo Somba, que acabou de gravar no estúdio Bunker, Guilherme Castro (foto) coordena o curso de licenciatura em música do Instituto Metodista Izabela Hendrix. Paralelamente à finalização do LP Homônimo, ele se concentra em estudar o ofício de produção musical em sua tese de doutorado, incluindo peculiaridades dos processos de gravação analógico e digital. “O método antigo requer planejamento maior e a chance de manipulação do material é menor. Isso exige do produtor um domínio diferente dos equipamentos e nos faz resgatar o senso de que erramos mais do que achamos. Tudo isso dá caráter mais orgânico à gravação”, analisa.

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