sábado, 11 de abril de 2015

ENTREVISTA/FERNANDO MARQUES » Severino Francisco

ENTREVISTA/FERNANDO MARQUES » Severino Francisco "O teatro foi a primeira arte a se organizar, associada à música popular, para dar uma resposta coletiva ao golpe"


Estado de Minas: 11/04/2015



Professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB, Fernando Marques lança livro sobre o movimento de contestação ao regime militar que tomou o poder em 1964



 (Raquel Pelicano/Divulgação
)
Professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB, Fernando Marques lança livro sobre o movimento de contestação ao regime militar que tomou o poder em 1964


Quando o regime de exceção imposto pelos militares fechou o tempo, o teatro foi a primeira das artes a organizar um movimento de resistência ao cerceamento dos direitos políticos e ao império do arbítrio. A reação veio, principalmente, dos grupos Arena e Opinião, ao incorporar a tradição do teatro de revista e imprimir um outro sentido aos musicais, que passaram a veicular mensagens e questionamentos, contestações políticas. Esse é o tema de Com o século nos olhos — Teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970, de Fernando Marques, professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB.

Sob qual perspectiva se deu a retomada da tradição do teatro de revista nos anos 1960?

Tínhamos no Brasil uma tradição de teatro de revista que vinha desde o século 19, e se estendeu até os anos 1950, precisamente quando surge a geração de Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Chico de Assis. Todos eram ligados ao Arena, quando o grupo tomou uma dimensão política. Eles não usam black tie, a primeira peça de Guarnieri, ficou um ano em cartaz, e teria salvo o grupo Opinião da falência, segundo algumas versões. Porém, havia também um desejo de fazer um teatro que incorporasse recursos narrativos para contar histórias que abrangessem greves, movimentos políticos, lutas sociais e saísse do espaço de 150 lugares que ocupavam em São Paulo em busca de um público mais amplo. Vianinha e Chico de Assis vão para o Rio de Janeiro e criam A mais valia vai acabar, seu Edgar, uma peça que incorporava traços narrativos do musical.

O teatro seria a primeira manifestação de resistência ao regime de exceção de 1964?

A primeira vai se dar em dezembro de 1964 com o show Opinião. Revolução na América do Sul, do Boal, com direção de Zé Renato, se alinha nessa vertente. Mas ela é representada, sobretudo, por A mais valia vai acabar, seu Edgar, que atraiu muito público, embora não fossem os operários que Vianinha queria alcançar. Em 1961, começam as atividades do Centro Popular de Cultura, que funciona até 1964, quando a sede é metralhada e incendiada. O teatro foi a primeira arte a se organizar, associada à música popular, para dar uma resposta coletiva ao golpe.

Era uma leitura política brechtniana da tradição musical brasileira?

O que ocorreu é que Vianinha e Chico de Assis se associaram a Carlos Lira com o objetivo de alcançar públicos mais amplos. Acharam que o humor e a canção eram formas propícias para atingir mais pessoas. Então, o que ocorre é que eles reuniram múltiplas referências . Quando montaram A mais valia vai acabar, seu Edgar, existe a tradição do teatro de revista, o fascínio pelo musical norte-americano, havia o entusiasmo com teatro político de Piscator e de Bretht. Essa salada de referências deu impulso ao teatro brasileiro de 1964 para diante.

Que experiências proporcionaram a tensão do teatro com uma situação política conflituosa?

Há um primeiro momento em que os artistas não acreditavam que o golpe tivesse vindo para ficar por tanto tempo. Eles se desiludem cruelmente em 1968, com a decretação do AI 5, que é um golpe dentro do golpe. Até 1968, havia liberdade relativa para criticar. Em 1964, Opinião faz referências satíricas ao golpe, com grande sucesso, e não chega a ser censurada. Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, não é tão maltratada no Rio, mas em São Paulo sofre censura.

E do ponto de vista da experimentação do teatro como linguagem?

Você pode distribuir essas peças, que se estendem até os anos 1980, em famílias; o texto colagem de cenas curtas, do Teatro Opinião; o texto inspirado em fontes populares, como é o caso de Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Ferreira Gullar, em versos; a vertente épica de Arena conta Zumbi, fortemente influenciado por Bretch, mas com interpretação original. A narração amplia a história para um século inteiro. Embora muito presa ao momento, a peça faz analogia entre a luta pela liberdade no século 17 e em 1965. E tem a comédia musical, na qual poderíamos destacar peças como Gota d’água, de Chico Buarque, de 1975, e O rei de Ramos. O final de O rei de Ramos tem aspecto curioso: já não há a necessidade de transformar o espectador em militante político que vai derrubar o governo nas próximas duas horas. Há uma atitude mais crítica em relação ao início dos anos 1960, desenvolve-se um senso crítico sem nenhuma ingenuidade que fala ao nosso tempo.

Qual a relevância dessa dimensão da história cultural brasileira?

Existem, no momento, vários grupos que trabalham com o formato dos musicais: a Companhia do Latão, o Galpão, os Clowns de Shakespeare – esses últimos talvez até em uma chave cômica demais, mas muito felizes. Os Clowns de Shakespeare passam do cômico ao sério, sem transição. Isso é algo que vem da experiência do Teatro Arena. Foi na forma do musical que o teatro respondeu à ditadura. Os artistas correram risco com uma forma mais leve em um tempo muito perigoso. Seria um desperdício desconhecermos uma experiência tão rica quanto essa.

O teatro vive um novo momento de montagens musicais. Como estabelece um contraponto da produção dos anos 1960 com a atual?

A voga atual reaparece de maneira amnésica, sem se lembrar das experiências desses artistas: Millôr Fernandes, Paulo Pontes, Vianininha, Lima Duarte, Dina Sfat, Paulo Pontes. Tudo foi esquecido ou desconhecido quando a voga dos musicais é retomada no fim dos anos 1990 e se olha demais para os Estados Unidos, que deve ser uma fonte sim, mas jamais a única. É hilário, para não dizer trágico, que as pessoas adultas gastem muitos reais para ver montagens de O rei Leão. Talvez fizéssemos melhor prestando atenção no rei da Vela ou no rei de Ramos.


COM OS SÉCULOS NOS OLHOS: TEATRO MUSICAL E POLÍTICO NO BRASIL NOS ANOS 1960 E 1970
. De Fernando Marques
. 368 páginas, R$ 47.90

Nenhum comentário:

Postar um comentário