sábado, 11 de abril de 2015

Histórias de violência e de esperança

Histórias de violência e de esperança Quadrinista Ugo Bertotti adapta documentário fotográfico de Agnes Montanari para narrar o drama de mulheres escravizadas em uma sociedade opressora como a do Iêmen


Valf
Estado de Minas: 11/04/2015


 (Editora Nemo/Reprodução)






A repórter fotográfica e documentarista jordaniana Agnes Montanari passou três meses viajando pelo Iêmen e produziu a reportagem que serviu de base para o ilustrador Ugo Bertotti conceber O mundo de Aisha – A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen. Fotografando e entrevistando várias mulheres do local, Agnes forneceu material rico em drama e significado. Embora vindas de classes sociais distintas, todas elas tinham um ponto em comum: a asfixia de sua condição por uma cultura misógina totalmente enraizada em seus costumes.

Ugo Bertotti, ilustrador e quadrinista italiano que já trabalhou para grandes publicações, como Linus, Alter Alter e Metal Hurlant, soube bem como aproveitar os recursos que a linguagem dos quadrinhos oferece, somando força e certo lirismo ao trabalho jornalístico de Agnes, e, assim, pôde criar uma obra diferenciada na maneira de mostrar e debater esse problema. O fio condutor que ele usou para contar as várias histórias do álbum é a discussão da obrigatoriedade ou não do uso do niqab, véu que cobre totalmente o rosto da mulher, deixando expostos apenas os olhos.

Dogmas

Muito mais que se valer de uma metáfora, Ugo Bertotti quis mostrar a representação palpável do jugo social vivido pelas mulheres. O uso do niqab não aparece como obrigatório sequer nos textos da sagrada escritura. Portanto, dogma mais social que religioso. Dividido em vários capítulos, cada um começando com o nome e a foto da personagem retratada (em quase todas aparecendo apenas os olhos), mostra que a opção do uso ou não do niqab na verdade não existe. Em tom velado, a ameaça. A mulher pode escolher, mas séculos de tradição afirmam que o mais pertinente, até para sua proteção, é o uso.

Com relatos de intolerância e submissão, o quadrinista nos apresenta retratos de uma cultura cristalizada no tempo. Na sua maioria, as mulheres são obrigadas a se casarem muito novas, quase sempre em uniões arranjadas em troca de retorno financeiro. Na verdade, são praticamente crianças que, à força, pulando preciosas fases do desenvolvimento humano, se tornam mulheres e mães. Sem escolhas, sem livre-arbítrio e, muitas vezes, sem futuro. E quanto mais afastado da capital, quanto mais pobre, mais retrocesso.

Na primeira história, Bertotti se distancia da reportagem factual para contar a história de Sabiha. Apenas com os relatos de Agnes e usando a cobertura do caso feita pelos jornais do Iêmen, e apesar da crueldadedos fatos, o autor dsenvolve seu momento mais poético do livro. Para contextualizar a situação das mulheres no Iêmen, recria um passado fictício para Sabiha, um quebra-cabeça montado a partir de outros relatos que se repetem à exaustão na sociedade iemenita. É doloroso acompanhar sua trajetória imutável, marcada por sofrimento e falta de escolhas em um casamento hermético e violento. Em casos extremos como o de Sabiha, a brutalidade é a tradução para o que erroneamente se confunde com honra.

Ruptura

Outras histórias se sucedem, em uma sequência por vezes surreal. Hamedda, a segunda personagem, tem sua vida similar à de Sabiha em seu começo. Porém, tendo a sorte de ter um marido totalmente omisso, prospera com a abertura de um restaurante. Se, por um lado, a questão da violência doméstica não é um problema para Hamedda, por outro, seu sucesso é marcado pelo ódio e hostilidade da sociedade, que não aceita sua independência.

E o que dizer então do capítulo kafkaniano da mulher que, após uma briga pela compra de um sutiã errado, é espancada pelo marido, pede o divórcio, é rejeitada pela própria família e um dia, ao esquecer o dinheiro para pagar um táxi, é presa por cinco meses. Quando sai da prisão, não tem mais casa ou trabalho, indo morar na rua, como indigente.

Aisha, personagem que dá título à HQ, simboliza um ponto de ruptura dessas histórias. Moradora da capital, fez faculdade e trabalha em uma empresa de software. Pretende se casar ao fim do mestrado de seu noivo. Pode escolhê-lo. Não foi mais uma das imposições arbitrárias de um matrimônio arranjado, mas um desejo pessoal. Seus sonhos progressistas resvalam ainda, como não poderia deixar de ser, nas questões morais da sociedade. Mas de maneira muito mais branda.

Milhares de relatos similares aos contados no livro preenchem o enorme abismo existente entre as histórias de vida de Sabiha e Aisha. De um lado, a tristeza absoluta de vidas perdidas pela falta completa de opções. De outro, o alento da possibilidade de mudanças. É a roda da história se movendo, lenta e silenciosa.

Retrato fiel

Lendas são alegorias, muitas vezes de fundo moral, que, misturando real e fantástico, buscam explicar, fatos, histórias e tradições. Primeiramente transmitidas de forma oral, acabam passando por transformações, somando ou perdendo partes, fruto da passagem entre interlocutores. Todavia, por mais mudanças que possam ocorrer, mantêm sua estrutura básica intacta e, algumas vezes, acabam podendo se tornar um intenso registro de uma época.

Remontando aos tempos bíblicos, após cruzar por vários meses o colossal deserto de Rub’ Al-Khali, Sem, filho mais velho de Noé, encontra um oásis e lá resolve parar com sua caravana. Uma escrava vem, então, dar a notícia a Sem. Não antes de se desculpar em nome da mulher e de todo o harém. Uma de suas mulheres, que estava grávida, acabara de dar a luz. Mas a uma menina.

O chefe do clã se desespera, corroído pela agonia de nenhum de seus descendentes ser homem. Esse fato é comparável à desonra suprema. Manda que a criança seja prontamente enterrada viva no deserto. A escrava, que na verdade acaba se revelando um djin (gênio), propõe um acordo a Sem. A vida da menina seria poupada, ela se tornaria mais uma de suas esposas e a caravana não mais levantaria acampamento. Iriam construir ali sua morada. Tudo isso em troca de um filho homem.

Com o acordo feito, sentado em frente a uma montanha, Sem sonha como seria sua cidade. Nela, caberia à mulher o cuidado com a vida privada, com o lar. Já ao homem, o comando do que é público, do comércio à política. Ao cruzar esse limite privado/público, a mulher deveria, de maneira metafórica, tornar-se invisível, desaparecer. O oásis aos pés do Monte Nigam se tornou Saná, capital e principal cidade do Iêmen. Já essa pequena lenda, uma história secular contada de geração em geração, se converteu no fiel retrato da condição de um grande número de mulheres da região até os dias atuais. Em muitos casos, um legado de opressão.

 (Editora Nemo/Reprodução





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O MUNDO DE AISHA

. De Ugo Bertotti
. Editora Nemo
. 144 páginas, R$ 39,90

Ugo Bertotti já trabalhou para publicações como Linus, Alter Alter e Metal Hurlant
 (Francesca Leonardi/Divulgação)
Ugo Bertotti já trabalhou para publicações como Linus, Alter Alter e Metal Hurlant 

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