terça-feira, 27 de novembro de 2012

Livro revê relação entre política e loucura


Livro revê relação entre política e loucura
Historiadora Laure Murat examina as consequências da Revolução Francesa na vida psíquica dos cidadãos
"O Homem que se Achava Napoleão" traz relatos de alucinações com a guilhotina e o imperador francês
MANUEL DA COSTA PINTOCOLUNISTA DA FOLHAEm 1790, em plena Revolução Francesa, um decreto de lei determinou que "as pessoas detidas por causa da demência" deveriam ser soltas das prisões e encaminhadas ao tratamento em hospitais.
Dois anos depois, o médico Antoine Louis inventa o dispositivo que permitirá implementar a lei de execução proposta por Joseph-Ignace Guillotin em 1789: a guilhotina, símbolo do período conhecido como Terror (1793-1794), durante o qual cerca de 17 mil pessoas foram decapitadas, incluindo o rei Luís 16.
A partir desse momento, a expressão "perder a cabeça" (imagem metafórica para a desrazão) adquire sinistra concretude -e o trauma provocado pelas "missas vermelhas" do "teatro da guilhotina" invade os manicômios na forma das alucinações relatadas por Laure Murat em "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política Loucura".
"Eu não teria insistido sobre essa coincidência, que os surrealistas chamariam de 'acaso objetivo', das invenções da guilhotina e da moderna psiquiatria, se não tivesse encontrado nos arquivos um grande número de delírios que se referem à guilhotina", explica a historiadora francesa, em entrevista concedida à Folha dos Estados Unidos, por telefone.
Murat mergulhou nos arquivos de hospitais como Sainte-Anne, La Salpêtrière e Bicêtre para resgatar histórias como a do operário que definha no medo de ser levado ao patíbulo, ou do relojoeiro que garante ter sido decapitado e que sua cabeça pertence a outrem.
Porém, como o título do livro indica, o delírio mais frequente tinha por objeto o político que pôs fim ao projeto revolucionário.
"A imagem de Napoleão com chapéu bicorne e mão enfiada no colete é a caricatura do louco. Verificando os arquivos, constatei que os loucos da época se tomavam mais por Napoleão do que por outros soberanos", diz ela.
"Pôde haver essa maior identificação com Napoleão porque ele não tem legitimidade dinástica, não descende do rei e não tem direitos divinos, mas é um aventureiro que se tornou imperador pela força."
MEGALOMANIA
Num dos "insights" do livro, Murat lembra que o "pequeno caporal" foi um golpista de ambição ilimitada. Portanto, "o homem que se toma por Napoleão é um usurpador que se toma por um usurpador, e um megalômano que se toma por um megalômano", escreve ela.
A pesquisa vai até a Revolução de 1848 (com a insurreição política sendo diagnosticada como demência) e a Comuna de Paris de 1871 (quando guerra e fome são recorrentes nas alucinações).
Essa profusão de discursos de alienados relativiza algumas afirmações do célebre livro "História da Loucura", do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), para quem a revolução não liberou a loucura, mas apenas reduziu-a ao silêncio, por meio do discurso psiquiátrico.
"Certamente há uma vontade normativa na psiquiatria do século 19", afirma Murat, "mas também uma vocação para a cura, o esforço de escutar aquilo que o louco tem a dizer -mesmo que para recolocá-lo no caminho certo, moralizante."
"Há uma produção discursiva absolutamente irrefutável, que só pode ser encontrada nos arquivos", avalia a historiadora francesa.
"Não esqueçamos que Foucault escreveu seu livro admirável quando se encontrava na Suécia, onde tinha muitos livros a sua disposição", relembra. "Mas não os arquivos dos hospitais franceses que consultei."
O HOMEM QUE SE ACHAVA NAPOLEÃO
AUTORA Laure Murat
EDITORA Três Estrelas
TRADUÇÃO Paulo Neves
QUANTO R$ 59,90 (400 págs.)

    RAIO-X - LAURE MURAT
    VIDA
    Nasce na França em 1967. É especialista em estudos culturais.
    CARREIRA
    É professora do departamento de Estudos Franceses e Francófonos da UCLA (Universidade da Califórnia), em Los Angeles
    LIVROS
    Escreveu, entre outros, o livro "La Maison du Docteur Blanche" (2001), em que resgata a história do asilo que acolheu os escritores Nerval e Maupassant. Recebeu o Goncourt de biografia e o prêmio da Crítica da Academia Francesa pelo trabalho. "O Homem que se Achava Napoleão" é seu primeiro livro publicado no Brasil.

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