domingo, 16 de dezembro de 2012

Passagens para o século 21 [a arte e a critica no Brasil]

Folha de São Paulo

CRÍTICA
A arte e a crítica no Brasil
RESUMO As trajetórias paralelas do crítico Lorenzo Mammì e do pintor Paulo Pasta flagram o amadurecimento tardio da arte contemporânea brasileira e do país. Em livros de ensaios e de textos de cunho pessoal, ambos discutem esse processo em face dos legados artísticos americano e europeu e do mercado de arte globalizado.
MILTON OHATA
LORENZO MAMMÌ desembarcou no Brasil em 1987, com uma bagagem a que não estamos acostumados. Eram muitas malas, cheias de arte, literatura, filosofia e música.
O olhar especialmente dotado de Mammì -nascido em Roma, em 1957, e formado em Florença- vem da linhagem de críticos italianos como Lionello Venturi (1885-1961), Roberto Longhi (1890-1970) e
Giulio Carlo Argan (1909-92), num ambiente onde há séculos a beleza da arquitetura e das obras de arte está à vista das pessoas.
Meio estrangeiro, meio brasileiro, como Sérgio Milliet (1898-1966), paulistano formado na Europa, e Theon Spanudis (1915-86), turco de origem grega radicado em São Paulo, ele em breve se tornou uma presença decisiva no ambiente artístico da cidade. Como Milliet e Spanudis, não só escreveu sobre cultura mas teve papel fundamental na consolidação de instituições, como o Centro Universitário Maria Antonia, da USP, onde se aglutinou toda uma nova geração de artistas e críticos.
"O que Resta - Arte e Crítica de Arte" [Companhia das Letras, 416 págs., R$ 59,50] reúne ensaios e textos de intervenção que cobrem toda essa trajetória. Antes de tudo, a prosa do autor é de se tirar o chapéu, a erudição fica à vontade no contato íntimo com as obras e é vertida em frases de elegância e clareza modelares.
Como o de seus colegas de ofício Ronaldo Brito e Rodrigo Naves, trata-se de um ensaísmo de alto valor literário. Creio que muito de sua têmpera vem da atuação em um momento único de adensamento e desprovincianização da arte brasileira, presente nos vários textos da seção "Ocasiões", não por acaso a mais extensa do livro.
Quando Mammì começou a publicar, Volpi, Lygia Clark, Willys de Castro e Mira Schendel acabavam de morrer, Sérgio Camargo partiria pouco depois, Franz Weissmann, Iberê Camargo, Amílcar de Castro e Eduardo Sued estavam em plena maturidade e novas gerações se afirmavam (com Waltercio Caldas, Cildo Meirelles, José Resende e Tunga) ou despontavam (com Paulo Pasta, Nuno Ramos, Laura Vinci e Elisa Bracher), em rica interação com as anteriores.
A análise de cada um desses artistas é feita em triangulação com o domínio amplo da arte europeia e da americana, mas as remissões nunca têm mão única e ressaltam, quando existe, a originalidade das soluções brasileiras para questões surgidas nos grandes centros.
GRANDE EFEITO Ainda que o conjunto não tenha seguido um plano predeterminado e muito menos possua a intenção de delinear uma história, é possível divisar nele a coesão de uma matéria específica. O esquema geral busca identificar uma dinâmica interna na arte brasileira e, nesse sentido, é semelhante ao que Lucio Costa, Antonio Candido, Decio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes formularam para a arquitetura, a literatura, o teatro e o cinema (a palavra-chave aqui é formação).
Como diz o autor, em texto sobre Jac Leirner para a Bienal de Veneza de 1997, "a arte brasileira parece refratária a qualquer sedimentação de valores formais, qualquer ordenação do mundo mediante generalizações. Tudo nela se torna fluido e instável. [...] Esse caráter oscilante e contraditório, pelo qual o ato formador não se fixa nos objetos, mas desliza neles como um líquido sobre uma superfície impermeável, remete a outras linhas fundamentais da cultura brasileira: a ideia de uma civilização que não progride, não acumula, mas apenas estratifica[...]. O grande feito dos principais artistas das décadas de 1950 e 1960 é ter conseguido construir uma poética dentro dessas questões, e não apesar delas, numa época em que as utopias do modernismo e a concepção linear da história estavam entrando em crise. Isso fez com que a arte brasileira daqueles anos participasse do debate artístico internacional com uma contribuição original, que ainda não foi plenamente avaliada".
Esse período e seus desdobramentos no presente são o tema de um dos melhores ensaios do livro, "Encalhes e Desmanches: Ruínas do Modernismo na Arte Contemporânea Brasileira", em que se percebe claramente que as soluções originais do neoconcretismo foram retrabalhados em outra chave pelas gerações seguintes.
"A Educação pela Pintura" [WMF Martins Fontes, 184 págs., R$ 45], do artista plástico Paulo Pasta, mostra esse processo coletivo a partir de dentro -não é gratuita a imagem de seu ateliê na capa do livro. Pasta é o pintor dos tempos longos da memória. Em suas telas, associando tinta e cera, a intensidade da cor mais aparece do que é ("Uma cor 'passa' assim como uma fruta 'passa'", escreve Pasta).
A própria ideia de "educação" pressupõe a de acúmulo lento e progressivo ("O que busco é justamente evitar que o desejo se precipite de imediato em projeto").
O título parece se referir também a Friedrich Schiller e seu "A Educação Estética do Homem" (1795), tentativa de integrar razão e emoção, ética e felicidade. Mas "educação", aqui, é sobretudo "relação produtiva com o passado".
Assim, faz todo o sentido que Pasta abra seu livro com ensaios sobre dois mestres, um brasileiro e um francês, na aparência tão diferentes dele mesmo. Para Iberê Camargo, o passado "seria uma condenação, mas, ao mesmo tempo, a única forma de poder existir".
Na pintura de Matisse, Pasta encontra um ideal de harmonia que decorre no entanto de um trabalho árduo, a partir da tradição. "Ele não queria diminuir o poder de nenhum dos elementos da pintura."
Em bonitos depoimentos pessoais e textos sobre os pintores e escritores de sua predileção, Pasta toca discretamente em todas as questões do livro de Mammì: como e por que continuar pintando em um contexto em que a arte não resiste mais a um mundo acelerado, saturado de imagens e dominado pela lógica da mercadoria?
MAL-ESTAR Nos últimos anos, a globalização e a abertura da economia brasileira pegaram no contrapé a dinâmica interna pressuposta nos livros de Mammì e Pasta.
A arte brasileira passa a ser valorizada de fora, por outros critérios. Nosso ambiente tem hoje mais artistas, mais mostras, mais público, mais livros, mais mídia, mais circulação internacional e mais dinheiro. "A arte é um abre-alas, e a gente vem atrás fazendo negócios", como resumiu o ex-banqueiro e colecionador Edemar Cid Ferreira.
Um certo mal-estar tomou conta de uma geração brilhante de críticos, formados na sinergia com os artistas que havia valorizado -o grupo do Rio, com Paulo Sérgio Duarte e Ronaldo Brito à frente; o de São Paulo, com Rodrigo Naves, Alberto Tassinari e Sônia Salz-
stein. Em "O Vento e o Moinho" (2007), livro que possui muitas afinidades com "O que Resta", Naves assume explicitamente o mal-estar diante do encontro da arte brasileira com o mercado internacional.
Mas a interrupção de uma dinâmica local não faz de Mammì um catastrofista diante do liquidificador da mercadoria. Essa nova situação, em que arte e crítica de arte se dissociam, recoloca as perguntas de Argan ao constatar que a passagem de bastão da arte europeia para a americana, especialmente o pop, significava o fim de um processo histórico. Em suma, a arte perdia uma autonomia que tinha raízes no Renascimento e se misturava ao mundo. Se arte e mundo são a mesma coisa, qual a razão de ser da crítica?
Na mesma época, com formulações e respostas diferentes, Arthur C. Danto e Hans Belting também faziam essa pergunta. Essa é, no fundo, a questão da primeira parte do livro de Mammì, "Narrativas".
O que resta para a arte é bem pouco, mas seria necessário afiar a crítica e olhar com curiosidade para novas tendências. Mammì tem uma visão original a respeito, que não faz tábula rasa do passado e, muito ao contrário, mobiliza-o novamente.
A prova está no ensaio mais longo e denso do livro, "As Bordas", complementado por "Isto, Aquilo e o Valor Disso", em que o autor estabelece um novo paradigma crítico a partir da relação da obra de arte com o espaço em que se coloca.
A ideia de "fim da arte" (ou de sua autonomia) é relativizada numa análise rigorosa e aberta que, sem deixar de pressupor a história e a geografia da arte como as conhecemos, é a um só tempo linear e circular, agregando conhecimentos de natureza técnica, histórica e cultural, num impressionante arco de tempo que vai das grutas de Lascaux à atual proliferação das imagens na internet.
A análise de cada um desses artistas é feita em triangulação com o domínio amplo da arte europeia e da americana, mas as remissões nunca têm mão única
O que resta para a arte é bem pouco, mas seria necessário afiar a crítica e olhar com curiosidade para novas tendências. Mammì tem uma visão original, que não faz tábula rasa do passado

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