quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Editorial FolhaSP

FOLHA DE SÃO PAULO

Atavismo médico
Após uma década de tramitação, permeada por verdadeira guerra entre corporações, aproxima-se da votação final o projeto de lei que define o ato médico. Se não houver novas intercorrências, a proposta vai ao plenário do Senado em março e daí à sanção presidencial.
Verdade que o projeto atual é um pouco melhor do que sua versão inicial, mas ele ainda conserva traços excessivamente corporativistas. Uma interpretação literal do artigo 4º, III, parágrafo 4º, por exemplo, torna exclusividade de médicos fazer tatuagens, instalar piercings e fazer acupuntura.
Também é complicado, em pleno século 21, marcado pelo esmaecimento das fronteiras entre os vários ramos da ciência, aceitar o inciso III do artigo 5º, que torna privativo de médicos o ensino de disciplinas médicas.
Se os próximos grandes avanços vierem, como se imagina, da nanotecnologia e das células-tronco, teremos cada vez mais físicos, engenheiros, biólogos e biomédicos com conhecimentos e técnicas relevantes para ensinar aos médicos.
A principal falha do projeto, entretanto, não está nesses exageros corporativistas, com grande possibilidade de engrossarem o rol das "leis que não pegam". O próprio texto, aliás, diz que a aplicação da norma deverá resguardar as "competências próprias" de outras profissões relacionadas à saúde.
O erro fundamental da proposta é mais profundo. Ela parte do falso pressuposto de que a saúde é um feudo a ser repartido entre as diversas categorias profissionais e, assim, tenta reservar ao médico o papel de suserano.
Ninguém duvida nem contesta que os médicos sejam a peça mais fundamental de qualquer sistema de saúde. São eles, afinal, os detentores do conhecimento. Ainda assim, a máquina só funciona se todas as engrenagens estiverem operando em conjunto.
Os países mais desenvolvidos discutem novas maneiras de integrar e imprimir eficiência a equipes de saúde, mas no Brasil enfrentam-se as dificuldades contemporâneas com uma anacrônica demarcação de território. É um projeto com respostas do início do século 20 para necessidades do século 21.

    EDITORIAIS
    editoriais@uol.com.br
    Promessas e dívidas
    Em contraste com a disputa eleitoral, novos prefeitos adotam agora um discurso mais cauteloso a respeito da administração municipal
    Durante a campanha, promessas faraônicas. Na cerimônia de posse, austeridade fiscal. É grande o descompasso entre os discursos dos candidatos e os que os novos prefeitos adotaram ao assumir os cargos para os quais foram eleitos.
    Em sua maioria, os novos alcaides destacaram a necessidade de cortar despesas -mediante a extinção de secretarias, redução de cargos de confiança e revisão de contratos- e elevar receitas -reajustando impostos, aumentando tarifas e renegociando dívidas.
    No Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB) determinou um corte de 10% nos gastos das secretarias. José Fortunati (PDT), em Porto Alegre, acenou com uma revisão do IPTU. Em Salvador, ACM Neto (DEM) ordenou uma redução de 20% nas despesas com cargos de confiança.
    Além de problemas herdados dos anos anteriores, justifica a cautela o otimismo que, presente nas previsões orçamentárias, em geral termina ausente no exercício fiscal. "Não sabemos como a arrecadação vai ficar nos próximos anos", lembra o prefeito reeleito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda (PSB).
    Seu colega de São Paulo, Fernando Haddad (PT), recebeu possivelmente o encargo mais complexo: renegociar a dívida da cidade com a União, de cerca de R$ 50 bilhões, que implica repasses anuais de quase 10% do Orçamento municipal e impede a tomada de mais recursos para investimentos. O débito é paralisante, e o petista acerta ao mirá-lo com prioridade.
    Em que pese a boa vontade do governo Dilma Rousseff (PT) em melhorar as contas de São Paulo e de tantas outras cidades, a situação financeira da própria União talvez imponha limites à generosidade com a coisa pública.
    Cumpre lembrar, a esse respeito, que a política de desoneração do setor privado implementada pelo Executivo federal impactou negativamente as contas municipais. As prefeituras tiveram sua arrecadação diminuída com a redução de alguns tributos, como o IPI.
    Elogiável do ponto de vista da gestão pública, o discurso prudente dos novos administradores, contudo, praticamente não frequentou a campanha eleitoral. O esbanjamento de promessas só cresceu, dia após dia, até o final do horário gratuito no rádio e na televisão.
    Na época, advertências sobre a penúria dos cofres públicos só apareciam -sintomaticamente- nos programas de postulantes desprovidos de chances de vitória.
    Esse descolamento entre os excessos da campanha e as carências da administração é uma particularidade dos regimes democráticos que dificilmente será eliminada. É normal que o eleitorado prefira candidatos que ofereçam obras e serviços de qualidade. Desde que as promessas sejam factíveis, poucos se perguntam sobre as condições para que tais metas sejam alcançadas -e não são pequenas as frustrações daí decorrentes.
    Num mundo ideal, a distância entre o discurso e a prática deveria ser reduzida ao mínimo. No mundo real, os prefeitos devem honrar o máximo de seus programas de governo sem nunca descuidar da saúde das contas públicas.

      Nenhum comentário:

      Postar um comentário