domingo, 24 de fevereiro de 2013

Arquivo aberto - Julio Medaglia

folha de são paulo

ARQUIVO ABERTO
memórias que viram histórias
As crias de Curt Lange
São Paulo, 1959
JÚLIO MEDAGLIARevirando arquivos em casa, encontrei uma reportagem da extinta revista carioca "O Cruzeiro" do dia 29/8/59. A reportagem acusava o renomado musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange de roubar manuscritos de obras do barroco mineiro musical e se negar a entregá-los a uma biblioteca pública brasileira, já que se tratava de patrimônio histórico nacional.
A tese em si estava correta, não fossem os acontecimentos que precederam esse texto malicioso, que ameaçava o cientista musical e descobridor daquele acervo com um mandado de busca e apreensão.
Curt Lange (1903-97) iniciou seus contatos com a América do Sul na década de 1930. Já famoso, foi levado ao Uruguai para criar uma rádio cultural e uma sinfônica. Com o início da Segunda Guerra, resolveu ficar por lá. Casou-se com uma uruguaia, naturalizou-se cidadão daquele país e latinizou seu nome de batismo, que era Franz Kurt Lange.
Iniciou uma vasta investigação sobre a música latino-americana, conferindo aos mais diversos acervos encontrados um status cultural até então inimaginável. Tendo feito inúmeras investigações culturais no Brasil, jamais acreditou na tese de nossos musicólogos de que a música brasileira de concerto se iniciara nos primórdios do século 19 com o padre José Maurício e com os músicos da Corte.
Depois de dezenas e infrutíferas tentativas, batendo na porta das mais diferentes instituições brasileiras, Lange resolveu fazer a pesquisa por sua conta e risco. Com um Jeep adquirido a preço de banana depois da guerra, Lange rumou para as regiões onde o "gold rush" havia propiciado um surto cultural -sobretudo Ouro Preto, Mariana e Diamantina.
Aos poucos Lange foi identificando resquícios de velhas instituições e confrarias (todas de mulatos) e, em casas de família, armários antigos repletos de papel velho com anotações musicais. Eles eram vendidos em época de festas juninas para fazer foguete -papel velho explode fácil, diziam.
Adquirindo e reunindo montanhas dessa papelada em seu apartamento no Rio, Lange foi aos poucos restaurando e identificando um tesouro adormecido por quase dois séculos. Passada a fase inicial de descoberta e restauração daquele surpreendente barroco mulato, Lange iniciou outro calvário: a busca de instituições musicais que editassem e apresentassem as obras.
Nesse momento iniciou-se o bombardeio que culminou com a desonesta reportagem de "O Cruzeiro". Lange nunca se negou a mostrar esses manuscritos que havia adquirido em suas andanças, mas não os repassava a ninguém, pois o Brasil não possuía à época instituições em condições de entender, restaurar e preservar o acervo.
Apavorado com as ameaças que vinha recebendo, Lange colocou todo o material em seu carro e rumou para minha casa em São Paulo. Minha mãe possuía um enorme armário de madeira em uma dispensa. Esvaziamos o móvel para abrigar aqueles pacotes repletos de manuscritos.
Apresentei Lange ao mestre Sergio Buarque de Holanda que, identificando a seriedade do trabalho, o convidou para uma série de palestras na USP. A partir de então ninguém ousou questionar a validade da pesquisa e o valor artístico dos manuscritos.
Na casa, tínhamos uma vira-lata que havia sumido. Depois de alguns dias a encontramos dentro do armário onde estavam as partituras, pouco antes de elas voltarem para a casa de Lange no Rio. Bob, como era chamada, tinha tido quatro filhotes que, no aconchego daquele armário, e sobre "macio estofamento", nasceram com plena saúde.
Brinquei com minha mãe: "Veja que lindos! Todos pretinhos!" Ela respondeu: "Claro, são filhos do barroco mineiro. Você queria que fossem loiros e de olhos azuis?" Não tivemos dúvidas. Homenageamos os mestres mulatos dando o nome deles a cada filhote: Lobinho (Lobo de Mesquita), Neves (Inácio Parreiras Neves, ao mais clarinho), Rochinha (Francisco Gomes da Rocha) e Marquinhos (Marcos Coelho Neto).

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