domingo, 10 de março de 2013

A barca da Igreja - AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA



www.affonsors@uol.com.br

Estado de Minas: 10/03/2013 

Muito sugestivo aquele comentário do papa Bento XVI de que Deus estava dormindo enquanto a barca da Igreja sacolejava e parecia adernar. Alguém maldosamente pode perguntar: mas Deus dorme? Não. Se o universo parar para dormir, será o caos. Imagine um elétron dizendo para o resto da turma do átomo: é hora de dormir. E as células, as estrelas e o Sol, todo mundo querendo dormir. Não dá. O papa usou uma figura de retórica, não era Deus, eram os homens, ou melhor, a Igreja mesmo que estava dormindo.

O papa estava se referindo a algo que encontramos em Mateus 8, 23-27, em Lucas 8, 22-25 e em Marcos 4, 35-41. Marcos assim narra o acontecido: “Naquele dia, sendo já tarde, disse-lhes Jesus: passemos para a outra margem”. Em seguida, os apóstolos se despedem da multidão e se lançam ao mar em seus barcos. A narrativa diz que havia outros barcos. Afinal, aqueles seguidores eram pescadores, homens do mar. E, quando se levantou o temporal, Cristo, espantosamente, não estava nem aí, dormia alheio à grande agitação. No entanto, como os discípulos entrassem em pânico e acordassem o mestre, este estranhou tanto pavor. “Despertando, repreendeu o vento, e disse ao mar: ‘Acalma-te, emudece!’. O vento se aquietou e fez-se uma grande bonança.”

Se estivesse ainda num púlpito, como tantas vezes o fiz na adolescência, diria: “Meus amados irmãos! Atentai para algumas coisas específicas que quero lhes dizer. Não vou lhes lembrar que Cristo, para surpresa dos apóstolos, já havia caminhado sobre o mar. Nem vou lhes recordar que Jesus tornou piscosas aquelas águas antes tão estéreis. Portanto, ele seria também capaz de façanhas miraculosas, como acalmar a tempestuosa natureza”. Mas há uma coisa nesse texto bíblico que gostaria que meus amados irmãos e irmãs observassem. O texto começa dizendo uma coisa importante e que tudo tem a ver com a história da Igreja. Diz Marcos que Jesus, ao final do dia, disse aos seguidores: “Passemos à outra margem”.

Então, torno mais explícito o que o papa deveria ter dito e não o disse com palavras, mas com gestos. Meus irmãos, minhas irmãs: estamos no fim de uma dia, ou melhor, no fim de um período histórico. A Igreja tem que atravessar para a outra margem. Leiam: “Passemos para a outra margem”. Em Mateus, o texto é mais incisivo: “Ordenou passar para a outra margem”. Isso é uma determinação imperiosa. Estamos numa travessia. Que o diga outro apóstolo apócrifo, Guimarães Rosa: “O que existe é travessia”.

A Igreja deveria ter feito essa travessia há muito. São Francisco, há uns 800 anos, já dizia que a nave estava a pique. Lutero e tantos outros, há mais de 500 anos, jogaram-se ao mar e colocaram em dúvida a ideia de que fora da barca não há salvação. Era natural que Cristo, falando a pescadores, usasse pedagogicamente a linguagem náutica. Mas o mundo mudou. Há quem julgue a Igreja um navio fantasma na neblina dos séculos. Outros acham que é o Titanic a caminho do iceberg. Há quem ache que os hereges são piratas perigosos. Há pescadores com a obstinação do capitão Ahab do romance Moby Dick e há quem, parodiando os fatos, lembre o que sucedeu, na Itália, com capitão que largou o barco e ouviu esta reprimenda: “Vadda a bordo, cazzo”.

Amadas e amados leitores, é memorável o que estamos assistindo. Memorável e paraxodal. O timoneiro que largou o barco virou herói. Entregou o leme da Igreja para que outro a colocasse em novos rumos.

Os tempos são outros, o mar está encapelado e não dá para voltar à margem antiga. Passemos à outra margem!

Nenhum comentário:

Postar um comentário