quarta-feira, 13 de março de 2013

Basta de violência contra a mulher - Eleonora Menicucci [Tendências/Debates]

folha de são paulo

ELEONORA MENICUCCI
TENDÊNCIAS/DEBATES
Basta de violência contra a mulher
O governo lança hoje uma rede de serviços para vítimas de violência que inclui orientação profissional, para garantir a independência da mulher
As brasileiras já contam com um marco legal de enfrentamento à violência saudado pela Organização das Nações Unidas como uma das legislações mais avançadas do mundo, a Lei Maria da Penha.
Temos ainda a Central de Atendimento à Mulher Ligue 180, o Pacto de Enfrentamento à Violência com Estados e Municípios, a indenização regressiva (por meio da qual os agressores são obrigados a ressarcir ao INSS as indenizações pagas pelo Estado às vítimas ou a seus dependentes), o 2º Plano de Combate ao Tráfico de Pessoas e os centros especializados de fronteira.
Faltava consolidar a rede protetiva que integrasse os serviços e qualificasse o acesso. Não falta mais.
A presidenta Dilma, que falou firme com os agressores ao deixar claro no seu pronunciamento no Dia Internacional da Mulher que a maior autoridade neste país é uma mulher, lança hoje, no Palácio do Planalto, a Rede Integrada de Atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero.
Fecha-se, assim, o círculo virtuoso de atendimento que aponta para a redução dessa pandemia social.
Essa rede oferecerá todos os serviços já disponíveis, atualmente dispersos, e outros tantos novos, a partir de agora de forma integrada. Estarão reunidos num mesmo prédio, especialmente desenhado para um acolhimento respeitoso e que será implantado inicialmente nas 27 capitais, desde que os governos estaduais adiram ao plano.
Nesse prédio, do Centro Especializado Integrado de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência, funcionarão as delegacias da mulher, as defensorias, os juizados ou varas, as promotorias, defensorias e os serviços de assistência psicossocial.
Os serviços de saúde e de assistência social (centros de assistência social, de acolhimento e abrigamento) e o Instituto Médico Legal serão integrados aos centros por um fluxo de transporte que os ligará na medida da necessidade das vítimas.
A novidade é que a esses se somam a orientação para o trabalho, emprego e renda e o espaço de recreação para as crianças que acompanharem as mulheres.
Ou seja, as atendidas nessa rede disporão não mais apenas de uma porta de entrada, mas também, a partir de agora, de um acompanhamento integral e de uma porta de saída.
A porta de entrada poderá ser pelo Ligue 180, pelos serviços de saúde ou pelas delegacias da mulher. Com a rede integrada, a vítima passa a encontrar em um mesmo espaço todos os serviços de uma só vez, em vez de peregrinar em busca de cada um deles.
Outra vantagem da rede é o acompanhamento integral. Muitas vezes, a mulher sente medo e vergonha e demora até tomar a decisão de procurar um desses serviços. E, por dificuldades de acesso aos demais, atualmente dispersos em diferentes pontos das cidades onde vive, ela nem sempre retorna. Então, o serviço a perde. Uma das consequências tem sido, algumas vezes, a notícia de mais uma mulher assassinada. Assim, um serviço muito importante no centro é a recuperação da dignidade cidadã.
Garantir-se a defesa e a segurança e cuidar dos ferimentos causados na dignidade das vítimas é fundamental, mas não basta. É necessário um passo adiante. Isso porque essa mulher precisa tomar ou retomar em suas mãos a condução de sua vida e sua condição de sujeito de direitos.
É por isso que, no espaço da rede integrada dos serviços públicos, haverá a orientação e qualificação profissionais. Essa será a porta de saída.
Com mais esse investimento nas cidadãs, o governo federal comprova sua obsessão em eliminar a desigualdade de gênero na sua faceta mais cruel.


ALDO PEREIRA
TENDÊNCIAS/DEBATES
Horrores reais, amores falsos
No processo de intrigas da sucessão papal, assassinato era solução costumeira. A renúncia de Bento 16 mostra o papado menos malevolente
Maria Teofilatto (?892-?927) teria 14 anos quando o papa Sergio 3º a engravidou. Marozia, como a celebrizaram, deve ter tido especial orgulho de ver coroado como João 11, aos 20 anos (ou 21), o filho tido de Sérgio. Cinco outros descendentes dela chegariam a papa.
Amantes e três sucessivos maridos colaboraram. Mas também, claro, não lhe faltaram adversários: outro de seus filhos a manteve encarcerada (ou enclausurada) até ela morrer, ninguém sabe quando nem como nem onde.
Na época, sucessão papal fascinava famílias aristocráticas ramificadas pelos impérios, reinos, principados, ducados e outras casas do xadrez político europeu. Antes de 1059, apenas potentados laicos nomeavam papas, e o primeiro conclave data de 1276.
No processo de intrigas e extorsões da sucessão papal, assassinato era solução costumeira de impasse. Bonifácio 6º, sucessor de Formosus, morreu após 15 dias de pontificado. "Causa mortis" oficial, gota. O imperador Lamberto di Spoleto nomeou para sucedê-lo o dócil Estêvão 6º.
Motivada por inesquecidos rancores, a imperatriz Agiltrude logo exigiu que Estêvão convocasse um sínodo para julgar Formosus. Estêvão mandou exumar o cadáver (sepultado oito meses antes), paramentá-lo e sentá-lo no trono.
A "defesa" nem conseguiu absolver o réu nem livrá-lo de agravamento da pena: ter decepados os três dedos que todo papa estende para abençoar com a mão direita. Como achasse pouco infamante esse desfecho, Agiltrude mandou exumar de novo o cadáver e despejá-lo no rio Tibre.
Passados alguns meses, Lamberto fez as pazes com os aristocratas que tinham patrocinado Formosus. Na reviravolta, Estêvão acabou deposto e estrangulado. Antigos aliados de Formosus descobriram seu corpo, que um monge recolhera do Tibre e sepultara. Encerraram por fim o caso, então, com terceira exumação e quarto sepultamento.
A cultura de horror se manteria enquanto os papas puderam preservar poder temporal nos Estados papais, ricos territórios da Itália doados pelo imperador franco Pepino, o Breve (ou "o Baixinho", 714-761). O encolhimento dos Estados papais se completaria em 1929, quando Benito Mussolini os delimitou com o nome oficial italiano de Santa Sede (Stato della Città del Vaticano), que no latim oficial é Sancta Sedes (Status Civitatis Vaticanæ).
Até que Pio 9º o aposentasse em 1864, o carrasco Giovanni Battista Bugatti (1779-1869) supliciou em Roma 516 pessoas condenadas por delitos comuns e políticos (conspirar contra o papa era crime de lesa-majestade). E por que não? Pois Agostinho e Tomás de Aquino não aprovaram pena capital?
Bugatti a infligia com forca, machado, guilhotina e marreta (para afundamento de crânio seguido de degola), e às vezes subsequente esquartejamento. Embora não aplicada no século 20, a pena de morte vigeu na Constituição da Santa Sé até ser abolida por Paulo 6º em 1969.
A renúncia de Bento 16 e subsequente sucessão mostram hoje o papado menos arrogante e malevolente, mais compatível com a conduta e o sentimento genuinamente humanitários de tantos católicos. Mas regras anacrônicas ainda contradizem o preceito de amor ao próximo.
É desamor favorecer propagação de doenças e procriação irresponsável com proscrição de camisinha e pílula. Impor celibato clerical. Endossar misoginia paulina para interditar o sacerdócio à mulher. Incitar ódio a homossexuais. Dificultar a promissora pesquisa de células-tronco. Negar voz e prestação de contas aos fieis.
Tradição valida autoridade, sim. Mas qual tradição?

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