sábado, 2 de março de 2013

O cinema independente atrapalha blockbusters? [Tendências/Debates]

folha de são paulo

MARIZA LEÃO
TENDÊNCIAS/DEBATES
O cinema independente atrapalha blockbusters?
NÃO
Ao som das pernas pro ar
Dois filmes brasileiros protagonizaram um início promissor para 2013. De um lado, "De Pernas pro Ar 2", cuja extraordinária performance o levará a cerca de 5 milhões de ingressos. De outro, "O Som ao Redor", que arrebatou a crítica no Brasil e no exterior.
Ambos expressam a riqueza do cinema brasileiro e são motivos para comemorarmos a força de uma cinematografia que só avança. Portanto, estranho e lamento que proliferem comentários de desdém sobre um ou outro filme, como se a existência de um fosse uma ameaça ao outro.
Afirmações que desqualificam os valores de produção e talentos ligados às recentes comédias brasileiras mais dão conta de uma rejeição prévia do que de uma análise das obras em si. Não há gênero "menor": fazer rir é tão ou mais difícil do que fazer chorar, tão ou mais difícil do que fazer pensar. Todo e qualquer filme é um desafio.
Há longos anos na atividade, sempre aceitei as críticas. Mas críticas agressivas feitas por colegas de profissão me causam profundo mal-estar. Ao ter seu trabalho reconhecido, um cineasta deveria olhar para aqueles que também estão em busca de aplausos. Desmerecer o que é diverso do que fazemos alimenta uma autofagia irresponsável.
Quero aplaudir todos que se dedicam a construir uma cinematografia forte no Brasil.
Por sua natureza, o cinema é arte e também indústria. Anualmente são produzidas milhares de horas de material, distribuídas entre uma diversidade de gêneros e orçamentos. Esse mercado envolve bilhões de dólares -e o Brasil é um dos cinco maiores do mundo. Temos, sim, a responsabilidade de mantê-lo ativo, pois isso representa geração de empregos e até mesmo influi na balança comercial de nosso país.
A produção de "De Pernas pro Ar 2" levantou R$ 3,2 milhões de recursos federais incentivados. Seu custo total foi da ordem de R$ 12,5 milhões e seu lançamento contou com mais de 700 cópias, sendo exibido em praticamente 90% dos municípios brasileiros que dispõem de salas de cinema. O projeto envolveu cerca de 120 técnicos e 25 atores.
Segundo estudos feitos pela RioFilme, o longa gerou um PIB de R$ 66 milhões, pagou R$ 8,8 milhões de impostos federais, R$ 1,6 milhão de impostos estaduais e R$ 3,9 milhões de impostos municipais.
Para atingir esses resultados, foi necessária a participação de profissionais empenhados em tornar "De Pernas pro Ar 2" o filme com maior bilheteria do verão de 2013. Além dos distribuidores envolvidos, a participação da Globo Filmes -com seu know-how para que o filme tivesse a visibilidade compatível com suas ambições- merece ser destacada.
E não é possível entender o resultado dos filmes da "retomada" sem compreender o papel da Globo Filmes. Apoiando obras que vão de "Tropa de Elite 2" a "Anjos do Sol", de "Se Eu Fosse Você" a "Corações Sujos", de "Meu Nome Não É Johnny" a "5X Favela", a entrada da Globo Filmes no mercado representa uma conquista para o crescimento do cinema brasileiro. Há lugar para todos: filmes que ambicionam reflexões profundas e os que conquistam o espectador competindo com blockbusters estrangeiros.
Ao longo de quase 30 anos, produzi filmes de naturezas diversas. De "O Sonho Não Acabou" ao "Homem da Capa Preta", de "Meu Nome Não É Johnny" a "Apenas o Fim", de "De Pernas Pro Ar 1 e 2" a "Guerra de Canudos", espero que nos próximos anos eu consiga manter essa diversidade. E espero ainda poder encontrar em cada diretor, técnico, ator ou exibidor um aliado para levar adiante os meus sonhos.


CEZAR MIGLIORIN
TENDÊNCIAS/DEBATES
O cinema independente atrapalha blockbusters?
SIM
Cinema e democracia
A convivência entre filmes feitos para um público massivo e filmes que encontram formas de existir com orçamentos menores e sem a necessidade de distribuições gigantescas sempre existiu.
Quando pensamos em cinema, reconhecemos o fenômeno social e buscamos na memória os filmes que foram compartilhados por um grande número de pessoas. Lembramo-nos tão intensamente dos filmes que nos tocaram individualmente quanto daqueles que se tornaram eventos incontornáveis e parte de um imaginário coletivo.
Na vida de um espectador, "ET", de Steven Spielberg, e "Serras da Desordem", de Andrea Tonacci, convivem com harmonia e relevância. A importância do cinema como evento em uma comunidade e que afeta o indivíduo singularmente é parte da beleza da arte.
Assim, quando mencionamos um blockbuster, não estamos falando do sempre desejável sucesso de público, mas de uma lógica econômica com que operam certas produções cinematográficas. O que organiza, então, essa lógica? Como expressa o revelador nome, trata-se de uma lógica de ocupação total dos espaços, um arrasa-quarteirão.
"O que iremos ver hoje?", perguntam-se os amigos no sábado à noite. "Só há um filme em cartaz." "Então vamos nesse mesmo." Os amigos que desejam o cinema para, durante duas horas, abdicarem do olfato, do tato, do gosto e da motricidade e habitarem outras vidas, agora, com um só filme disponível, estão presos no mesmo, na repetição de uma lógica que não pode deixar nada por perto.
"E qual é o filme mesmo?", pergunta um dos amigos. "É... Aquele com aquela atriz engraçada da Globo..." "Aquele que é continuação de um sucesso do ano passado?"
Surpreendente seria se ele não fosse um sucesso. Lembremos que "Crepúsculo", de Bill Condon, estreou no ano passado ocupando 60% das salas do Brasil. Essa vem sendo a estratégia de distribuição dos blockbusters.
Mas o que está em jogo com essa lógica é uma segunda ocupação absoluta. Trata-se de uma totalização das possibilidades sensíveis dos espectadores e de um esvaziamento do que pode o próprio cinema. Na lógica do arrasa-quarteirão, o que desmorona é a possibilidade do cinema como uma experiência que possibilita descobertas e invenções de si e do mundo. Sua lógica é da homogeneização dos espectadores e de uma universalização do conteúdo que elimina os tons e especificidades locais.
A resistência a essa ocupação total das salas e das formas fílmicas é parte da história do cinema. Uma resistência feita por artistas, produtores e toda uma comunidade que entende que o cinema não é apenas um produto ou um elemento de uma cadeia econômica, em que um filme pode ser entendido apenas com números.
Assim, podemos nos perguntar em que sentido o lançamento de um filme como "De Pernas pro Ar 2", de Roberto Santucci, em mais de 700 salas, com renúncia fiscal do governo federal de R$ 3,2 milhões, R$ 2,5 milhões da RioFilme e coproduzido pela Globo Filmes, é um sucesso?
O cinema independente ou que não compartilha a lógica dos blockbusters está constantemente apontando para uma outra lógica de funcionamento, inclusive da sociedade. Por um lado, nos dizendo que a arte, com sua diversidade e desconforto, é necessária para a invenção de um povo. Por outro, nos colocando o limite da organização de tudo pela lógica do mercado, sobretudo quando ele tende ao oligopólio.
A resistência à homogeneidade é propriamente uma questão democrática. Trata-se de garantir direitos. Direito do país se pensar e se inventar com os meios do cinema e direito de todos à riqueza e às possibilidades de fruição estética. Sem esses direitos, sem resistir à lógica dos blockbusters, a invenção no cinema será cada vez mais restrita às elites que frequentam festivais e cinema patrocinados.
Se podemos dizer que filmes recentes como "A Febre do Rato", de Cláudio Assis, "A Cidade É uma Só?", de Adirley Queirós, "Sudoeste", de Eduardo Nunes, "Mãe e Filha", de Petrus Cariry, entre tantos outros, atrapalham os blockbusters, é porque há um cinema que resiste aos projetos totalizantes e que insiste em expressar sua relevância estética, política e também econômica.

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