terça-feira, 16 de abril de 2013

ABORTO » Marcas de uma escolha - Luciane Evans‏

Depressão, transtorno bipolar e culpa são alguns dos transtornos emocionais vividos por mulheres que interrompem uma gravidez. Se não têm apoio psicológico, elas podem buscar consolo no álcool e outras drogas, dizem especialistas 


Luciane Evans

Estado de Minas: 16/04/2013 

"Eu tinha 17 anos. Nessa idade, você não tem muito o que pensar quando engravida. Meu namorado não tinha muitas condições financeiras, meu pai era médico, mas não contei nada. Abortei e foi muito traumatizante. Fiz a curetagem em uma casa de Belo Horizonte, sem anestesia. Lembro que era um procedimento caro na época. Tive hemorragia, mas tomei os remédios indicados. Fiquei anêmica. Tive depressão, mas não podia me dar ao luxo de manifestar a doença, pois meus pais não sabiam de nada. Durante muitos anos, ficava pensando naquilo, na dor que senti. A gravidez mexe com a gente. Depois tive dois filhos. Se na época tivesse recebido uma orientação ou um apoio não teria sofrido tanto. Mas conheço várias pessoas que já fizeram dois, três abortos, e não se importaram" M. A.*, de 42 anos


Muito mais do que as sequelas deixadas no corpo, como a perda do útero, milhares de mulheres se submetem a um aborto clandestino no Brasil e enfrentam, muitas vezes, um outro problema de saúde: o de ordem emocional. Angústia, alto grau de depressão e transtornos mentais são, segundo especialistas, as marcas cravadas na alma que podem aparecer de imediato ou anos depois, na maioria dos casos. O gatilho para o desenvolvimento desses males é disparado, principalmente, pelo preconceito da sociedade, pela culpa de ter cometido um crime segundo as leis brasileiras e pelas questões religiosas. Por tudo isso, muitas delas se fecham no silêncio, postura considerada pelos especialistas perigosa para a saúde mental.
Como mostrou ontem o Estado de Minas, o aborto é crime no Brasil, e é feito na clandestinidade por entre 800 mil e 1 milhão de mulheres por ano, de acordo com estimativa da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). A entidade estima também que no mínimo 300 brasileiras morrem em decorrência das complicações do procedimento clandestino anualmente. Os únicos casos nos quais o aborto é autorizado pela Justiça são risco de vida para a mãe, gravidez resultante de estupro ou fetos anencéfalos. Uma proposta para a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação está em avaliação no Senado. Ela foi enviada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que querem que o aborto seja retirado do Código Penal brasileiro, transformando-o em um direito da mulher.

A psiquiatra e psicanalista Gilda Paoliello, integrante da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria e professora da residência de psiquiatria do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg), diz que “a conotação estigmatizante da ilegalidade do aborto coloca a mulher na condição de ré, provocando sentimento de culpa, muitas vezes irreversível, levando a uma autocondenação sem apelo.” Segundo ela, essa posição de autocondenação se relaciona com grande incidência de sintomas depressivos e abuso de álcool e outras drogas. “Elas vivem também o transtorno de estresse pós-traumático, com vivências de flashbacks do ato do aborto, vivências persecutórias e ideação suicida em torno de 40% dos casos. Muitas vezes, o sentimento de culpa compromete indelevelmente a vida afetiva da mulher, provocando “gravidezes de substituição”, com prejuízo nas ligações maternas posteriores”, explica.
A psicóloga clínica hospitalar Cristina Mendes Gigliotti Borsari dedicou sua dissertação de mestrado à investigação das vivências femininas pós-aborto. No trabalho apresentado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), intitulado “Aborto provocado: uma vivência e significado. Um estudo fundamentado na fenomenologia”, Cristina constatou que tanto as mulheres que sofrem um aborto espontâneo quanto as que se submetem ao procedimento ilegal apresentam o discurso de culpa.
Na época do estudo, a pesquisadora atuava como psicóloga de dois hospitais públicos da periferia de São Paulo e entrevistou 120 mulheres que passaram pela interrupção da gravidez. Desstas, 11 confessaram ter abortado por vontade própria. “Eram pacientes que davam entrada nos hospitais com muita hemorragia. Duas delas, inclusive, precisaram ser internadas em uma unidade de terapia intensiva (UTI) e correram risco de morte. A entrevista era feita logo depois do processo de raspagem do útero”, revela.

DOR FÍSICA E PSICOLÓGICA Em todos os casos, a pesquisadora conta que as entrevistadas relataram sofrimento de dor física e psicológica. “Elas abortam, muitas vezes, por falta de apoio do companheiro. É claro que somada a isso tem também a condição social.” A culpa, de acordo com Cristina Borsari, era algo presente. “Ao perguntar como elas se viam daqui a cinco anos, elas falavam que achavam que teriam uma doença grave, que Deus ia castigar. Mesmo se sentindo aliviada por não ter mais o feto ali, dentro da barriga, elas tinham certeza que, de alguma maneira, iam sofrer algum castigo, como um câncer ou nunca mais ter filhos.”

Uma das conclusões do estudo é que o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem um respaldo de saúde mental imediato para mulheres que interrompem a gravidez. “Para as que fizeram na clandestinidade, há a angústia de não poder contar para ninguém. A mulher economicamente favorecida faz uma terapia e tem outros recursos de enfrentar esse sofrimento. Mas aquelas de baixa renda não, e têm de conviver com esse conflito. O aborto é tido como uma perda para todas elas, como tal, há a fase do luto, da negação, da revolta, da aceitação e também da depressão.”

INSTÂNCIAS FALHAM Para Marisa Sanabria, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, mestre em filosofia e coordenadora do grupo de trabalho A Questão do Feminino, nenhuma mulher quer abortar. “Ela chega ao aborto quando muitas instâncias, sobretudo a do poder público, falharam, e quando o parceiro não está presente. Nesse momento, elas se veem completamente sozinhas.” Antes da decisão, a mulher vive uma ambiguidade muito grande: drama interno, culpa e responsabilidade. “A saúde pública vai culpá-la, as instâncias institucionais, assim como a sociedade e a religião. Ou seja, o problema é todo da mulher. Mas é um drama que deveria ser compartilhado com todos.”
Baseada em suas consultas, a psicóloga afirma que não é tão simples acostumar-se com a ideia de ter feito um aborto ilegal. “Há pacientes que depois de 10 anos começam a repensar. Isso volta à tona e ela passa a pensar quem eram os reais protagonistas dessta história. É sempre uma vivência de brutalidade, psíquica e emocional”, diz.
Com 25 anos de experiência, a ginecologista e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)  Alamanda Kfoury diz que cerca de 50% das mulheres que optam pelo abortamento encaram isso bem. “Mas a outra metade pode ter dificuldades de se relacionar no futuro e carrega uma culpa gigantesca. As consequências são várias, de médio a longo prazo. É uma situação tão difícil que, às vezes, o parto seria mais fácil”, opina.

Palavra de especialista
Roseli Goffman
psicóloga clínica e conselheira do Conselho Federal de Psicologia 


O peso do preconceito
“O preconceito enfrentado por mulheres que abortam é um dos maiores fardos carregados. Primeiro porque há diferenças entre elas, de classe econômica, nível de informação, escolaridade. Dentro disso, há aquelas com sensibilidade maior ou menor diante de uma situação traumatizante. E há um agravamento, que é o julgamento do outro. Há dois tipos de aborto no Brasil: o da classe média e o da popular. As que têm menos condições fazem procedimentos piores, e quando têm complicações, vão passar por preconceito dentro do Sistema Único de Saúde, como, inclusive, de médicos que não querem atendê-las. Elas sofrem por não terem apoio nenhum, nem da classe médica, nem do Estado, e pelo fato de estarem sozinhas, enfrentando um preconceito milenar. Apesar das diferenças de classe, qualquer mulher que tenha interrompido uma gestação terá a fase de luto, de melancolia e de depressão, no mínimo.” 

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