segunda-feira, 15 de abril de 2013

Editoriais Folha de São Paulo

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Argentina congelada
Governo de Cristina Kirchner insiste na receita desestabilizadora de medidas dramáticas e autoritárias para controlar a inflação
A quase sempre convulsionada Argentina exibe desempenho econômico superior ao de países maiores da América Latina, com exceção do Chile. Nos 20 anos de 1992 a 2011, sua renda per capita cresceu a 3,7% ao ano, contra 3,9% no Chile, mas ao dobro do ritmo brasileiro e ao triplo do mexicano.
O tumulto argentino, seus colapsos dramáticos e recuperações vertiginosas suscitam desacordos apaixonados entre comentaristas, polêmica revivida outra vez agora, com o "modelo Kirchner" a apresentar sinais de fadiga extrema.
O governo de Cristina Kirchner arrancou de setores do varejo o compromisso de congelar preços ao menos até maio. Na semana que passou, Kirchner impôs um teto aos preços dos combustíveis. Segundo medidas extraoficiais, a inflação anual ronda 25%; segundo o governo, seria menos de 11%.
Desde 2007, quando o governo interveio no instituto estatal de estatísticas, o índice de preços calculado por instituições particulares sempre supera o oficial. O governo tem reprimido até a divulgação de cálculos privados de inflação.
O congelamento é motivado pela proximidade das eleições parlamentares de outubro. Mas a lista de intervenções estatais é longa.
O governo impôs severos controles cambiais, procurando limitar a compra e a remessa de dólares para o exterior, tradicional recurso de defesa argentino contra crises. Sinal da tensão econômica, a diferença entre a cotação oficial do dólar e a paralela chegou a 40%.
O governo ainda regula importações e exportações, toma medidas protecionistas drásticas (que muito afetam o Brasil, aliás), manipula fundos públicos e ameaça empresas. Se não bastasse, uma disputa com credores na Justiça americana pode redundar em junho em nova declaração de default (inadimplência) do governo.
Por mais que Néstor e Cristina Kirchner tenham tido mérito de retirar a Argentina de uma grande depressão, a insistência em lidar com problemas de fundo com medidas extraordinárias tornou-se contraproducente.
Os sintomas da crise são a inflação, a volta do deficit público e a queda das reservas internacionais. Sinais evidentes da síndrome de poupança e investimento escassos, de um modelo de crescimento ora insustentável.
O desempenho argentino nas últimas décadas indica que o país tem potencial de recuperação, desde que o governo normalize fundamentos econômicos, faça um acordo de paz com o mercado e deixe de recorrer a remendos que apenas adiam de forma perigosa o inevitável ajuste. Receita, aliás, que muito bem faria o governo brasileiro em adotar.


    Prefeitura "soft"
    O estrategista norte-americano Joseph Nye Jr. tornou famoso o conceito de "soft power" no estudo das relações internacionais. Trata-se, em resumo, da capacidade de um país de exercer sua influência no plano moral, cultural e ideológico, em contraste com o recurso à ameaça e à intervenção armada.
    Algo semelhante, "mutatis mutandis", poderia ser aplicado à lógica administrativa de uma grande cidade. Vastas obras viárias, novas escolas, creches e hospitais corresponderiam ao lado mais "duro", concreto, das atividades de uma prefeitura municipal.
    Em outro polo estariam aquelas iniciativas que, sem ser necessariamente propagandísticas, incidiriam sobre as normas, os comportamentos e os modos de convívio no espaço urbano.
    A Lei Cidade Limpa, na gestão de Gilberto Kassab (PSD), exemplifica o potencial de popularidade de que se cercam medidas desse tipo em São Paulo. Também a administração Fernando Haddad (PT) vem procurando, ao que parece, novas áreas em que iniciativas "soft" possam ser aplicadas.
    Contando com ampla maioria na Câmara Municipal, o prefeito aposta em medidas como o fim da taxa de inspeção veicular para carros aprovados pela fiscalização e a extinção da obrigatoriedade para os automóveis com até três anos de fabricação.
    Outras iniciativas desregulamentadoras são a permissão para que bancas de jornal voltem a vender produtos alimentícios e de conveniência --proposta do vereador petista José Américo, já aprovada na Câmara-- e a maior flexibilidade, que já teve efeitos nos festejos deste ano, para a realização do Carnaval de rua na cidade.
    São iniciativas de pequena monta, mas que apontam para uma despoluição burocrática. Nem todas as realizações do "soft power" urbano merecem, entretanto, apoio incondicional. Inscrevem-se nesse conceito, mas têm resultados problemáticos, os frequentes incentivos ao uso de bicicletas nas ciclofaixas de final de semana.
    Ocorre de muitas vezes o apoio ao ciclista se tornar um empecilho a mais na circulação não apenas de carros particulares, como também de ônibus. Sem contar que, oscilando entre o ato de manifestação política, o lazer e o transporte, o ciclismo na via pública tende a ignorar o risco óbvio de acidentes.
    Eis um caso em que um pouco de "hard power", isto é, de obras viárias alternativas, como a construção de ciclovias permanentes e seguras, combinaria bem com o efeito propagandístico e simpático dessa outra política municipal.

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