quarta-feira, 17 de abril de 2013

Estado de graça - Antonio Prata

folha de são paulo


Não sei se são os hormônios, a emoção ou as toxinas liberadas pelo bebê, mas é fato que durante a gravidez as mulheres padecem de um, digamos assim, "handicap" cognitivo. As queixas variam de gestante para gestante: há quem fique esquecida, quem funcione mais devagar; uma amiga relatou sérias dificuldades para acompanhar a trama de "Rei Leão", enquanto outra foi encontrar as chaves do carro "guardadas" no congelador --a forma de gelo, ela procura até hoje.
Para a glória e felicidade deste que vos escreve, minha mulher vem enfrentando, há sete meses e uma semana, semelhantes situações. Digo glória e felicidade não apenas pela paternidade que se aproxima, resgatando-me desta vil existência mortal e cadastrando-me na eternidade, mas porque, devido ao supracitado torpor gestacional, uma inédita mudança ocorreu no córtex cerebral de minha amada: ela deu para me achar engraçado.
Por seis anos, usei de todos os artifícios para fazê-la rir --embalde. Não que ela seja triste ou lhe falte humor, longe disso, é que se trata de uma pessoa mais refinada do que eu --ou, pelo menos, do que minhas piadas. Gosta de ir a balés, a exposições, adora filmes de países remotos, em que há mais diálogos do balido das cabras com o silvo do vento do que entre seres humanos. Não estou sendo irônico: admiro muito seu gosto e toda vez que, procurando algo em nosso iPod, tropeço num Tchaikovsky ou esbarro num Chopin, percebo o quanto ela me fez crescer, evoluir. Não fosse ela, eu ainda estaria por aí --de moletom, provavelmente-- dizendo coisas como: "É pavê ou pacomê?!".
Ter em casa tão implacável crítica fez de mim, modéstia à parte, um Stalone em "Rocky IV" treinando na neve, um Daniel San em "Karatê Kid" pintando muros: ensinou-me a ver na adversidade os halteres do espírito. Espírito que, hoje, fortalecido, evita, por exemplo, mesmo que sob fortíssima tentação, terminar o presente parágrafo com "Win Wenders e aprendendo".
Ou melhor, evitava, pois veio a gravidez e, num de seus muitos passes de mágica, mudou tudo. Se antes, em meus melhores momentos seinfeldianos, merecia no máximo um sorriso, hoje arranco aplausos com qualquer tirada de "Zorra Total". Os halteres enferrujam na área de serviço de minh'alma. Tô pior que tio bêbado em festa de família; é do pavê pra baixo --e só sucesso.
Que sábia a natureza: durante anos, todo mês, manda a TPM para a mulher, aguçando seu senso crítico, como se lhe sussurrasse: "Tem certeza de que é esse aí o cara ideal para propagar os seus genes?". Após a fecundação, contudo, sabendo da necessidade de um companheiro para trazer javalis abatidos, fraldas descartáveis e apoio moral, os hormônios baixam radicalmente os critérios, como se sugerissem à moça, em relação ao marido: "Se só tem tu, vai tu mesmo!". Ainda que "tu" seja esse cara aí no chuveiro, cantando "Mama Áustria", um velho clássico do "Casseta & Planeta", e, veja só, lucrando uma bela gargalhada.
Filhota, prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ser um bom pai. Uma coisa, contudo, garanto: serei um pai engraçado. Pergunte à sua mãe --de preferência, quando ela estiver grávida do próximo.
Antonio Prata
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

Nenhum comentário:

Postar um comentário