segunda-feira, 8 de abril de 2013

O povoado dos Kirchner por JOSEFINA LICITRA‏


REVISTA PIAUÍ > Edição 79  > Abril de 2013

Um passeio por El Calafate, o belo e obscuro “lugar no mundo” da presidente Cristina Kirchner

por JOSEFINA LICITRA

Em 29 de junho de 2009, Cristina Fernández de Kirchner teve de fazer um discurso difícil. Acabava de sofrer uma derrota política – a coalizão que a elegera, a Frente para a Vitória, tinha perdido a maioria no Congresso Nacional –, e esse revés estava sendo entendido como o fim de uma festa, o encerramento de um ciclo de otimismo que começara em 2003, com a posse de Néstor Kirchner.
Naquele dia de 2009, a presidente surgiu na sala de imprensa da Casa Rosada como tantas outras vezes: terninho ajustado, cabeleira solta e acobreada, o rosto coberto de pesada maquiagem e acompanhada de uma claque de funcionários que aplaudia suas palavras com euforia.
Mas o curioso não foi nada disso – que sempre acontecia –, e sim o que ela disse em seu discurso. Por uma hora e meia, com os resultados da eleição na mão – que incluíam um notável fracasso em Santa Cruz, a província patagônica de onde provém o casal Kirchner –, Cristina Kirchner garantiu que não havia sofrido uma derrota e que, justamente, a eleição em Santa Cruz a enchia de orgulho.
– O importante é que em El Calafate, o meu lugar no mundo, tivemos 60% dos votos – disse.
El Calafate era o povoado santa-cruzense de 18 mil habitantes onde os Kirchner tinham sua casa de campo, entre tantas outras coisas. E também o local onde, um ano mais tarde, Néstor Kirchner morreria de forma inesperada. Mas naquele momento, 29 de junho de 2009, ninguém sabia muito bem que lugar o vilarejo ocupava no universo pessoal e simbólico do casal presidencial. Os Kirchner começaram sua carreira política em Río Gallegos, a capital da província de Santa Cruz, em plena Patagônia argentina, e foi só depois que Néstor assumiu a Presidência da República que eles começaram a rondar El Calafate.
O povoado, portanto, era tido como um local de descanso eventual. Isso até junho de 2009, quando Cristina o citou para minimizar a derrota em Santa Cruz e em muitas outras províncias, atribuindo-lhe pela primeira vez o significado que ele realmente tem: El Calafate é o “lugar no mundo” de Cristina. O território que, como uma caricatura, expõe de modo exagerado e brutal a identidade do kirchnerismo.
– Essa história de “lugar no mundo” deve ser porque eles lavam todo o dinheiro aqui – dirá com sarcasmo Susana Toledo, da segunda geração de habitantes de El Calafate e uma das poucas pessoas na cidade que ousam criticar publicamente os Kirchner.
Mas ainda chegaremos lá.
Hoje, 26 de novembro de 2012, estou num avião, aterrissando no povoado. O aviãoestá cheio porque, embora El Calafate seja uma localidade muito pequena, é um dos centros turísticos mais importantes da Patagônia. Sua proximidade com a geleira Perito Moreno, somada a uma superoferta de hotéis – muitos deles ligados, primeiro, à atividade privada do casal Kirchner, e depois, à de Cristina –, faz de El Calafate uma vila ambiciosa: há muito dinheiro no município, mesmo que essa riqueza não seja evidente de longe. Do avião, e da van que me leva do aeroporto ao hotel, só se vê a aridez que marca aPatagônia: uma geografia de estepes e de ventos, matizada pelos picos nevados da pré-cordilheira dos Andes e pelo brilho turquesa do lago Argentino, um imenso espelho d’água que se estende até o Parque Nacional Los Glaciares, onde fica a geleira Perito Moreno.
A paisagem natural não é o único fator que contribuiu para a prosperidade de El Calafate. Para muitos, o maior incentivo à região veio de uma decisão política: no ano 2000, quando Néstor Kirchner ainda era governador de Santa Cruz, foi inaugurado um aeroporto no município. Daí em diante, a vila experimentou uma explosão. Em dez anos, o número de habitantes passou de 6 mil a 18 mil; o turismo disparou de 70 mil para 300 mil visitantes por ano, e houve um boom imobiliário que trouxe muito dinheiro e muitas perguntas. O que era um pequeno casario foi submetido a um crescimento desordenado: hoje não há escolas suficientes, não há planejamento urbano nem há uma rede de gás e esgoto que sirva a toda a população. O que há é uma série de terrenos e empreendimentos direta ou indiretamente ligados ao poder presidencial.
A seguir, apenas alguns exemplos: o hotel Imago, uma construção alpina e suntuosa em frente à baía Redonda, pertence a Raúl Copetti, procurador e tesoureiro de campanha da Frente para a Vitória; a pousada Las Dunas está em nome de uma firma presidida pelo kirchnerista Lázaro Báez, um ex-bancário que também está à frente da Austral Construcciones, empreiteira responsável por grande parte das obras públicas em Santa Cruz (construiu estradas, escolas, bairros e o mausoléu de Néstor Kirchner); o hotel Alto Calafate, uma edificação com vista panorâmica, localizada no alto de uma colina, pertence a Cristina Kirchner; e Los Sauces Casa Patagónica, um hotel-boutique de frente para o lago, também é da família presidencial.
– Todos esses hotéis têm, quando muito, 30% de ocupação anual – disse-me, antes de eu viajar, Alvaro de Lamadrid, um advogado e ex-candidato a prefeito de El Calafate que morou durante quase vinte anos na cidade e moveu uma ação contra cinquenta funcionários governistas, entre eles Néstor Kirchner. – A hotelaria é um negócio perfeito para a lavagem de dinheiro. Você pode ir a qualquer um desses hotéis e vai ver que está vazio.
 
Estive em Los Sauces em setembro de 2011. Passei um fim de semana lá, enviada pelo caderno de turismo do jornal chileno El Mercurio, que me incumbiu de contar como era “o hotel dos Kirchner”. O complexo, vizinho à casa decampo de Cristina – uma construção de dois andares e telhado de duas águas que, apesar de grande e bonita, não é especialmente suntuosa –, imita o estilo das grandes estâncias do início do século passado e tem uma decoração refinada. Comentava-se que a presidente tinha feito questão de cuidar ela mesma dos detalhes da ambientação – assoalho em tábua corrida de carvalho, candelabros lustrosos –, mas ninguém pôde garantir que era mesmo verdade. Uma coisa é certa, porém: todos os móveis de Los Sauces foram transportados de Buenos Aires até lá no Tango 01, o avião presidencial argentino, mantido com recursos públicos.
Contudo, não é a infinidade de rumores que circulavam – e continuam a cir-cular – em torno de Los Sauces a lem-brança mais forte que guardo daquela minha visita. Prevalece da minha estada lá uma sensação que é ao mesmo tempo uma certeza: no hotel inteiro, situado em um terreno de 4 hectares, eu era a única hóspede.
Pensei nisso depois daquela viagem – eantes de me encontrar com De Lamadrid –, quando examinei a última declaração patrimonial divulgada porCristina que incluiu todos os bens do casal Kirchner (depois, por causa da morte de Néstor, eles seriam divididos com os dois filhos). Naquela ocasião, em agosto de 2011, a presidente justificou a multiplicação de seu patrimônio (que cresceu mais de dez vezes em oito anos e chegou a 70,5 milhões de pesos, cerca de 23,5 milhões de dólares no câmbio da época), alegando, principalmente, os altos lucros obtidos com Los Sauces.
Mas isso não tranquilizou boa parte da opinião pública. Tanto que, um ano e meio depois, o ator Ricardo Darín questionaria o patrimônio dos Kirchner durante uma entrevista, e conseguiria o que nenhum jornalista conseguiu nos últimos tempos: um pronunciamento de Cristina sobre o assunto. “Não houve funcionários públicos mais denunciados criminalmente e investigados pela Justiça argentina em matéria de enriquecimento do que meu marido e companheiro de toda a vida e esta que lhe escreve”, disse a presidente numa carta a Darín divulgada em janeiro em seu perfil no Facebook. “Não apenas se investigou a fundo [o patrimônio] como também se determinou que o corpo de peritos da Corte Suprema da Nação realizasse perícias contábeis, e concluíram que não foi cometido nenhum ato ilícito, o que obrigou o juiz a arquivar as denúncias.”
 O negócio de Los Sauces, de acordo com a Corte, está dentro da lei. Segundo a declaração juramentada da presidente, o hotel inteiro estava arrendado para uma família de sobrenome Relats, proprietária de hotéis em Buenos Aires e Bariloche, que lhe pagava uma média de 157 mil dólares mensais para explorar o lugar. A julgar pela ocupação do hotel, só havia duas alternativas: ou os Relats estavam empenhados em falir, ou estavam ganhando dinheiro de outro modo. Ainda assim, as três ações movidas contra o casal Kirchner por suposto enriquecimento ilícito foram encerradas em tempo recorde. Os Kirchner, como disse Cristina na carta a Darín, nunca foram condenados por crimes patrimoniais ou financeiros.
– Os hotéis são o símbolo do modo kirchnerista de construção do poder – me dirá Roberto Novelle, comerciante e ex-presidente da Câmara do Comércio de El Calafate. – Veja só o caso de Los Sauces.Os Relats não são uma família qualquer. Além dos hotéis, eles têm uma empreiteira que há anos ganha boa parte das licitações para obras públicas no norte argentino, em meio a rumores de sobrepreços e licitações arranjadas. No ano em que começaram a explorar Los Sauces, ganharam a licitação para construir um trecho da rodovia Córdoba–Rosário, no valor de pouco mais de 100 milhões de dó--lares. Em paralelo, eles pagam milhares de dólares por mês aos Kirchner, que é um modo de lavar dinheiro dentro da lei.
Novelle me dará essa explicação. E diráoutras coisas também. E muitas outras pessoas também dirão mais coisas, e a certa altura ficará claro que permanecer em El Calafate implica expor-se a um nível de radiação informativa que, se não for filtrada a tempo, pode desnortear. O povoado é uma usina de nomes, denúncias e dados, em geral despejados em anonimato. Só quem tem o respaldo de um partido político dá nome e sobrenome ao se manifestar. Dito de outro modo, só falam às claras os membros da União Cívica Radical (UCR), que historicamente disputou o poder com o peronismo, mas que nos últimos anos está debilitada e sem líderes de expressão nacional.
 
AUCR de El Calafate tem 140 filiados, mas não chegam a dez os que de fato participam das reuniões no comitê. Hoje, segunda-feira, é dia do encontro. A sede local da UCR fica em uma rua estreita, como a maioria de El Calafate, aonde se chega lutando contra todas as formas de vento. Trata-se de um prédio simples localizado no fundo de um terreno baldio, coberto de capim seco. Nada é naturalmente verde em El Calafate.
 A reunião do comitê é realizada em uma sala modesta. Nas paredes, há retratos de dirigentes do radicalismo histórico como Raúl Alfonsín, uma bandeira argentina esquecida em um canto, um aquecedor e uma estante vazia. Ao redor de uma mesa com apetrechos de chimarrão e um pacote de biscoitos estão Susana Toledo, ex-candidata a vereadora de El Calafate, Pilar Duhalde, estudante e filha de Susana, Gustavo Badano, professor, e Daniel, um comerciante que se nega a revelar seu sobrenome.
– Com todo o respeito, mas quem é você? – pergunta.
Explico a ele.
Daniel é gordo, usa óculos pequenos e tem uma barba comprida e opaca, como cabelo de velho. Mexe nela com prazer, como se ali procurasse o fio de algum pensamento.
– Não posso dar meu sobrenome porque estou fazendo uma investigação secreta – diz, abocanhando um biscoito. A palavra “secreta” sai cheia de farelos.
Todos dão risada, mas em seguida afirmam que Daniel está falando sério. Ser militante radical em El Calafate, explicam, é complicado: vivem na obrigação moral de denunciar as irregularidades locais, mas não contam com o apoio de um partido com poder real. A UCR não tem peso político na cidade porque não conseguiu fazer um único vereador na eleição mais recente. Todos os vereadores são kirchneristas, entre outros motivos porque em Santa Cruz, portanto também em El Calafate, vigora a chamada Ley de Lemas: um mecanismo eleitoral que permite a cada coalizão apresentar vários candidatos, com a tranquilidade de que, terminado o pleito, ganhará aquela que, somando os votos de todos os postulantes, obtiver mais pontos. Esse sistema permitiu ao partido oficial, com mais estrutura, arrasar em todas as eleições.
– Eles têm todo o poder político, econômico e judicial. Ou seja, se você quer fazer uma denúncia, não consegue os documentos; se quer fazer uma investigação, não acha informações em toda a província… Por isso precisa ter muito cuidado. Qualquer coisa que você disser pode complicar a sua vida – diz Daniel.
– Complicar em que sentido?
– Se você precisa fazer um trâmite pessoal na prefeitura, por exemplo, não sai. Coisinhas, assim. Mas essas coisinhas vão te enlouquecendo.
Todos concordam com a cabeça, fumam e suspiram, como se fossem membros de um grupo de apoio aos sobreviventes de alguma tragédia. Tudo transcorre numa atmosfera de lentidão, sem nenhum brilho, exceto por um detalhe: Pilar Duhalde, a filha de Susana Toledo. Pilar é tão jovem, delicada e bonita que parece uma peça colocada em um tabuleiro errado. Tem 21 anos, pele suave e lábios viçosos e carnudos; um rosto que, em 15 de fevereiro de 2010, lhe valeu o título de Rainha do Lago no concurso de beleza de El Calafate.
Mas Pilar não teve a sorte que parece. No mesmo dia da premiação, Cristina viajou a Santa Cruz para presidir um ato protocolar na geleira Perito Moreno. E um dia depois desse discurso, o jornal Clarín, na época já em conflito com o governo federal, publicou uma matéria sobre o ato e, como contraponto, um boxe sobre Pilar. O jornal contou que, em território kirchnerista, a rainha da beleza era uma militante radical que, além disso, tinha o sobrenome de Eduardo Duhalde – o peronista, ex-presidenteinterino da Argentina, que conduziu Néstor Kirchner ao poder e depois se tornou seu ferrenho opositor.
Pilar Duhalde não tem nenhuma relação de parentesco com Eduardo Duhalde. Mas ninguém, nem o Clarínnem o governo, considerou esse detalhe.
– Misturaram tudo, e isso me prejudicou – diz Pilar. – As rainhas anteriores viajaram sem parar para as festas provinciais, e as que vieram depois também. Eu não viajei nem uma vez. Recebia os convites para visitar outras localidades, mas na prefeitura me diziam que o prefeito tinha dado ordem para eu não sair daqui.
A mãe dela, Susana Toledo, dá uma bufada áspera.
– É isso que a gente chama de “tornar a vida impossível” – diz. – Eles controlam tudo. Todo mundo depende do governo. Todo mundo está esperando uma isenção fiscal, ou um terreno, ou qualquer outra coisa. E todo mundo fica quieto porque sabe que tudo aqui é feito conforme a escola kirchnerista: prêmios para os fiéis, castigo para quem não se alinha.
 
De todas as formas de domesticação em El Calafate, a mais usual e mais eficaz está ligada à entrega – ou não – de terras públicas. Na cidade, a única forma de ter uma casa própria a um preço razoável é comprando um lote do Estado. Para tanto, depois dos trâmites burocráticos é preciso se submeter a uma entrevista com o prefeito, que é quem decide se entrega ou não o terreno ao interessado.
Desde dezembro de 2007, o prefeito de El Calafate chama-se Javier Belloni. Ele chegou ao cargo envolvido em sérias polêmicas – é réu em um processo por assassinato –, mas no quesito “terras” é bem correto e, segundo dizem, entrega os lotes de um modo mais razoá-vel que o prefeito anterior. Antes dele, em compensação, estava Néstor Méndez, um funcionário que ficou famoso pela frase “Vou te dar um terreninho” e ganhou as manchetes nacionais quando assinou um decreto de transferência de terras públicas a funcionários kirchneristas a um preço irrisório.
Néstor Méndez, ex-motorista de ambulâncias da vila, é conhecido em El Calafate como “o prefeito que vendeu o povoado”. Motivos para isso não faltam. Durante os doze anos de sua dupla gestão, e com o argumento de que era preciso “povoar El Calafate e desenvolvê-lo como polo turístico”, Méndez criou dois grandes bairros em terrenos públicos, distribuindo os lotes norteado por dois critérios: o do clientelismo político – nos meses anteriores à reeleição, chegou a distribuir mais de 1 500 terrenos – e o da especulação imobiliária.
Exemplo desse modo de “trabalhar a terra” são os dois bairros licitados: Salesiano, situado em uma área depreciada, distante do lago Argentino, e Aeropuerto Viejo, em uma área com vista para o lago. Os lotes do Salesiano foram vendidos para a população a 1,5 dólar o metro quadrado – Gustavo Badano, o docente radical, comprou um desses lotes –, e os de Aeropuerto Viejo, com localização privilegiada, foram vendidos também a 1,5 dólar, mas só aos chamados “amigos do poder”. Estes não usaram o terreno para construir uma “moradia única”, que é o uso autorizado para os terrenos públicos, mas para fazer negócios imobiliários que movimentaram milhões.
Por coisas assim, Méndez é acusado dos crimes de abuso de autoridade, peculato, tráfico de influência, fraude fiscal e conduta incompatível com a função pública. Mas até o momento nenhum desses processos o afetou. Hoje recebe uma aposentadoria como legislador – foi deputado provincial pelo kirchnerismo até 2011 – e caminha alegremente pelo povoado, imune à presença do seu nome em vários escândalos. Entre eles, o da Cencosud, uma das mais notórias negociatas que vieram à tona do tempo de Néstor Kirchner.
O “Escândalo da Cencosud” consistiu na entrega a Néstor, por decreto do então prefeito Méndez, de 2 hectares de terras públicas no bairro de Aeropuerto Viejo. Néstor comprou esse terreno quando já era presidente, por um valor equivalente, na época, a 50 mil dólares, e mais tarde o vendeu ao grupo chileno Cencosud por um montante quase cinquenta vezes maior: 2,4 milhões de dólares.
Essa manobra foi inicialmente denunciada por Héctor Barabino, um jornalista santa-cruzense, e mais tarde pelo advogado e dirigente radical Alvaro de Lamadrid, que reuniu informações suficientes para mover uma ação contra Néstor Kirchner por tráfico de influência. Por isso, entre outras razões, teve que abandonar o povoado.
 
Entrevistei Alvaro de Lamadrid em Buenos Aires no início de novembro. De Lamadrid é um homem alto, enérgico e de rosto vivo, quase infantil, que vestia um sóbrio terno azul-marinho e falava sem parar. O encontro aconteceu na zona dos tribunais, onde ele tem um pequeno escritório de advocacia.
Mal nos encontramos, em uma esquina, De Lamadrid começou a falar dos Kirchner e me entregou um livro de sua autoria. Intitula-se El Pingüino Emperador: 20 Años de Poder Bruto e tem na capa uma gravura de Néstor, que era chamado de “pinguim”, entre outros apelidos. Não me surpreendi tanto com o gesto, mas com minha reação: me preocupou ser vista com o livro na mão. Não há muito a dizer além do que implica essa sensação estranha, nova para mim.
Caminhei com o livro contra o peito até que chegamos a uma confeitaria onde era possível conversar com tranquilidade. Ali começou o monólogo. Foram duas horas e meia em que o homem despejou dados com a velocidade constante de uma máquina lança-bolas. Fiquei exausta e nervosa. O que segue é um resumo do que ele disse.
Alvaro de Lamadrid estudou direito em Buenos Aires e foi viver em El Calafate em 1998. Nessa época, já fazia sete anos que Néstor era governador de Santa Cruz e acabara de promover uma reforma na Constituição provincial que permitia a reeleição ilimitada, e que lhe per-mitiria, um ano depois, ser eleito pela terceira vez, com 54% dos votos.
Em todo caso, quando De Lamadrid se instalou com a família em El Calafate, o povoado não era nem sombra do que viria a ser mais tarde. Era um lugar minúsculo, onde os Kirchner não tinham nem um terreno e onde De Lamadrid montou seu escritório, abriu uma imobiliária e começou a se consolidar como militante da UCR. Nesse lugar, assistiu a uma das maiores crises argentinas e à nova ascensão de Néstor Kirchner.
 
Tudo começou em 2001, quando o presidente radical Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada e a Argentina mergulhou em um caos institucional que culminou num fato sem precedentes: em cinco dias, teve cinco presidentes. O último deles foi Eduardo Duhalde, um caudilho peronista histórico e habilidoso que em um ano e meio conseguiu estabilizar o país e prepará-lo para uma nova eleição presidencial, em 2003.
Quem seria o candidato do peronismo? Duhalde avaliou várias opções, entre elas a de Néstor Kirchner, uma figura desconhecida em nível nacional, que lhe permitiria continuar controlando o poder nas sombras. O acordo entre os dois foi firmado em uma propriedade de El Calafate, e foi claro: Kirchner se candidataria com o apoio do aparelho duhaldista, mas em 2007 – a eleição presidencial seguinte – devolveria o comando a Duhalde, com a possibilidade de indicar o vice-presidente da chapa. Supostamente, Cristina Kirchner.
– O desenho desse acordo só se explica num contexto como o da Argentina de 2003 – disse De Lamadrid. – Ninguém sabia nada sobre Néstor Kirchner. Era um candidato sem passado, e isso o beneficiou. Além disso, Kirchner financiou sua campanha com recursos de Santa Cruz, quer dizer, ele pagou para ser candidato. Isso pareceu tentador a Duhalde, e foi seu maior erro: subestimou Kirchner, que nunca respeitaria o acordo nem lhe devolveria o poder. Bom, é uma história cheia de detalhes, que eu conto no meu livro. Assumo a responsabilidade por tudo o que digo nele.
De Lamadrid citava seu livro o tempo todo: 250 páginas que tive de ler aos poucos, para não me deprimir. Ele levou à Justiça – e apresenta em seu livro – dados que permitiriam reconstituir parcialmente a origem e a dimensão da fortuna presidencial. A história é a seguinte: no início de 2003, o casal Kirchner começou a frequentar El Calafate nos fins de semana e, ao notar seu potencial econômico, logo começou a incorrer naquilo que De Lamadrid chama de “apropriação do público”. Quer dizer, guiados pelo prefeito Méndez e sua célebre frase “Eu vou te dar um terreninho”, começaram a comprar terras desenfreadamente.
De todos esses episódios, o que teve maior repercussão foi o da venda do chamado “terreno da Cencosud”. Ao saber da manobra, De Lamadrid reuniu provas e registrou a denúncia, movendo uma ação por “tráfico de influência” contra cinquenta pessoas, entre elas o casal Kirchner. Mas o que ele não previu foi que o processo, por envolver terras municipais, iria parar na promotoria de El Calafate. Desde então, o inquérito é conduzido pela promotora Natalia Mercado, sobrinha de Néstor Kirchner, filha de Alicia Kirchner – ministra do Desenvolvimento Social – e que figura entre os imputados na própria denúncia.
Trocando em miúdos, Natalia Mercado teve que investigar a si mesma. E até agora não encontrou nada suspeito.
– A corrupção kirchnerista em El Calafate é quase pornográfica. Eles com-pram terras lá porque têm certeza de que, por uma questão de jurisdição, qualquer denúncia vai parar na promotoria da família. Hoje existe no local toda uma indústria de terras e hotelaria nas mãos de laranjas. Em El Calafate todo mundo sabe que esses hotéis são usados para dar alguma veracidade ao crescimento inexplicável que aparece na declaração patrimonial. Mas isso é só a ponta do iceberg.
De Lamadrid falava aos brados, e eu estava em pânico. Tomei meu refrigerante olhando para a mesa, enquanto ele disparava seus dados de um modo exaltado e estranhamente jovial. Ele parecia contente, ou melhor, livre de qualquer temor. Por dizer esse tipo de coisas, durante sua campanha a prefeito e depois dela, De Lamadrid passou maus bocados. Teve os vidros de sua casa quebrados, os muros pichados com dizeres como “Viva Perón” e “Vivam os K”, e recebeu ameaças por telefone.
– Se um dia eu precisasse viajar para Río Gallegos – a 320 quilômetros de El Calafate –, perigava atender o telefone e escutar: “Sabemos que amanhã você tem que ir a Gallegos; cuidado, porque a estrada está péssima.” Teve um dia em que eu estava com uns amigos num bar, falando de mulher, futebol, política. Quando cheguei em casa e ouvi a secretária eletrônica, a conversa inteira estava gravada, como se fosse uma mensagem. Não sei como aguentei tudo aquilo. Durante algum tempo, meus amigos ainda me pagaram uma segurança privada. Até que eu cansei e vim embora para Buenos Aires.
De Lamadrid deixou El Calafate em abril de 2009. Por medo e porque não tinha mais trabalho. Ninguém pensaria em resolver qualquer problema nos fóruns de Santa Cruz tendo-o como advogado.
 
El Calafate é pequeno. Do alto de uma colina pode-se ver o povoado inteiro: uma mancha de casas coloridas que se esparramam de modo anárquico, ladeadas em alguns trechos por salgueiros e álamos que se sacodem com os espasmos do vento. São sete horas da noite, e embaixo, no Centro, os turistas caminham pela avenida Libertador – a via principal – depois de fazerem a excursão do dia.
O Centro de Calafate se estende por uma faixa de 500 metros em que há lojas de artesanato, agências de viagens, restaurantes e um imenso cassino que mistura o design étnico com o estilo imperial – registrado em nome de Jorge Bark, empresário ultrakirchnerista, dado como “devedor irrecuperável” pelo Banco Central da República Argentina. Entre tantas alternativas, opto pela única que me interessa: uma loja de chocolates. O lugar se chama Ovejitas de la Patagonia e tem caixas com desenhos de ovelhinhas, uma luminária com estampa de ovelhinhas e alguns quadros com pinturas de ovelhinhas. Compro chocolates em forma de ovelhinha e aproveito para fazer algumas perguntas.
– Tem gente que pensa que Ovejitas é da Cristina, porque a fábrica do meu patrão fica bem do lado de Los Sauces. Mas não; todo o resto é dela, menos Ovejitas – diz a vendedora, enquanto me entrega uma sacola.
Ovejitas de la Patagónia tem, de fato, uma loja no Centro e uma fábrica a 100 metros do hotel Los Sauces. Em maio de 2012, essa fábrica foi notícia de jornal por ter sofrido um dos maiores assaltos à mão armada registrados no município. Por causa desse tipo de episódio, cada vez mais comum, começa-se a falar, pela primeira vez na história de El Calafate, em “roubo com risco de morte”. É uma novidade difícil de entender, considerando-se que os dados oficiais registram pouquíssimos pobres no povoado.
Por que, então, há roubos em El Calafate? São várias as explicações: por um lado, acredita-se que os jovens não têm muito o que fazer e às vezes cometem delitos, não tanto por necessidade, mas por tédio. Em El Calafate não há cinemas – aliás, em toda a província de Santa Cruz não existe uma única sala –, e só recentemente foi inaugurado um centro cultural que inclui um teatro. As únicas diversões estão nos salões de baile e no cassino do povoado.
Por outro lado, os moradores dizem que as obras públicas locais são realizadas com trabalhadores trazidos de outras províncias, e que estes, quando a obra termina, ficam à toa no povoado, sem qualquer fonte de subsistência. Essas pessoas às vezes acabam roubando. No comitê radical, Susana Toledo completou assim essa explicação do problema:
– As empreiteiras trazem operários para trabalhar por dois ou três anos. Se no meio-tempo calha de acontecer uma eleição, tratam de entregar para eles um terreninho. Quando a obra termina, ficam sem trabalho, mas com o terreno. Aí não querem ir embora, querem morar no terreno, mas não têm como construir. Começam a levar uma vida mais marginal, e isso aumenta a criminalidade. Vivemos todos acuados.
Comparado com Buenos Aires, no entanto, El Calafate é um lugar muito sossegado. As pessoas caminham despreocupadas e leves. Observo parte do povoado da mesa de um bar. Estou agora no Casablanca, um dos cafés tradicionais da vila, que existe desde o tempo em que El Calafate era um reduto de ruas de terra. Rodolfo Novelle é o dono do local, por onde já passou todo o núcleo duro do kirchnerismo. Ele vem se sentar à minha frente.
Novelle já foi candidato a vereador pela UCR, mas não se elegeu. É alto, veste-se de preto, e seus cabelos brancos penteados para trás dão a seu rosto um ar cinematográfico. Agora se inclina, baixa a voz e olha pela janela.
– Você viu esse carro aí fora? O Audi, quero dizer: é do Gutiérrez. Ele tem dois Audi, além de um Porsche que deve valer uns 300 mil dólares.
 
Fabián Gutiérrez é o ex-secretário particular de Cristina Kirchner, processado por enriquecimento ilícito e absolvido em tempo recorde. O caso de Gutiérrez é paradigmático: ele chegou a Buenos Aires acompanhando Néstor Kirchner, em 2003, com um patrimônio declarado de 58 636 pesos argentinos (em torno de 20 mil dólares na época) e um Chevrolet Tigra. Em 2010, a declaração de Gu-tiérrez incluía quatro terrenos em Santa Cruz, dois apartamentos na capital federal, uma casa em El Chaltén (um povoado turístico da Patagônia), uma chácara e uma poupança de 204 276 pesos (51 mil dólares na época). Num desses lotes, situa-do nos subúrbios de El Calafate, ele construiu uma casa que as imobiliárias locais avaliam hoje em 3 milhões de dólares.
Ainda assim, um trabalho realizado pelo corpo de peritos contadores da Corte Suprema de Justiça concluiu que não houve nenhuma irregularidade em seu notável incremento patrimonial. Por isso Gutiérrez pode agora andar tranquilamente pelas ruas.
– Ele não precisa ser discreto, a lei aqui é a impunidade – diz Novelle. – Está mais do que claro que, por medo ou por conveniência, a sociedade local tem tolerado esse tipo de gente. O que conta aqui é a possibilidade de fazer dinheiro, portanto, mais do que bater de frente com o corrupto, todo mundo trata de ficar seu amigo.
Novelle chegou à região em 1988, quando ainda era um município de 3 mil habitantes que não dependia dos favores do governo. El Calafate tinha um pequeno empresariado que vivia do turismo e não do emprego público, por isso as pessoas não eram tão permeáveis às pressões partidárias. Até que em 2000 foi inaugurado o aeroporto, em 2003 chegaram os Kirchner – pelo menos explicitamente –, e daí em diante surgiu uma casta de novos-ricos que nunca havia posto os pés no povoado e começou a circular pelas ruas em carros importados.
Kirchner também passeava, mas a pé. E, ao contrário de Cristina, ele o fazia quase sempre sem séquito: um costume que aqui lhe valeu a fama de líder simples. Na cidade todos têm seu “momento com Néstor”: o dia em que fulano cruzou com ele caminhando à beira do lago, a vez em que beltrano o viu no Centro ou na Costanera, a manhã em que o presidente fugiu de um ato oficial e entrou na loja de sicrano para pedir um copo d’água. O curioso é que, apesar de todo esse carisma, no dia em que ele morreu em El Calafate – 27 de outubro de 2010 – o povoado não viveu uma comoção.
– Foi traumático – recorda Novelle. – Mas não houve uma manifestação espontânea, como no Palácio de Buckingham quando morreu Lady Di. Em Santa Cruz, apesar de todo o dinheiro que eles estão despejando aqui, começa a se perceber um início de resistência.
A resistência tem duas explicações. Por um lado, a hotelaria tradicional de El Calafate está sentindo certa asfixia. A superoferta de quartos (8 500 no total), impulsionada pelos negócios do kirchnerismo, derrubou o preço das diárias e mergulhou o setor em um processo de deflação que já provocou o fechamento de dois hotéis pequenos. Por outro lado, há a surpreendente resistência do próprio governador de Santa Cruz, Daniel Peralta: um funcionário que, pela primeira vez em vinte anos de fidelidade aos Kirchner, nos últimos meses começou a se rebelar, confrontando-se com Cristina. Desde então, o governo federal não só retirou o apoio a Santa Cruz como também está sufocando a província: interrompeu a transferência de recursos, e a escassez está causando um mal-estar que a população já não identifica tanto com Peralta, mas com a presidente.
As consequências disso começam a se fazer notar. Em 16 de novembro, Cristina viajou ao povoado para inaugurar o Museu do Brinquedo e também o centro cultural, mas muito pouca gente foi prestigiá-la. A prefeitura havia decretado ponto facultativo em todas as repartições públicas, inclusive nas escolas, mas só apareceram 250 pessoas. Destas, calcula-se que 200 eram funcionários públicos trazidos de outras localidades.
 
O centro cultural é uma construção austera, de fortes tons avermelhados e telhado de duas águas. Dentro, apesar de já inaugurado, o lugar está deserto: há apenas uma mulher que dá as boas-vindas e, sem saber muito bem o que fazer, permite ao visitante percorrer o edifício. O que se vê é um salão de exposições em tons pastel (vazio), uma biblioteca com livros em processo de classificação – muitos são dessas reedições baratas que acompanham o jornal de domingo – e um belo teatro com capacidade para cerca de 100 pessoas. Foi aqui que Cristina fez seu discurso.
Horas atrás, no comitê radical, todos diziam que a ausência de público na inauguração deixou Cristina tão furiosa que, depois do ato, “rolaram cabeças”. Daniel – o gordo incógnito – ampliou o conceito:
– Cristina costuma ter acessos de fúria. Com o Néstor, era diferente. Ele não brigava com você, só te dava o beijo da morte.
Daniel fez um silêncio teatral e prosseguiu:
– Se você discutia com ele, Néstor só dizia: “Acho muito bom ter podido discutir democraticamente com um companheiro como você”, e te dava um abraço e um beijo. A partir daí, você estava liquidado, porque todo mundo já sabia que era para quebrar as tuas pernas. Eu vi isso em um evento, com meus próprios olhos. Néstor discutiu com um prefeito, até que uma hora abraçou e beijou o sujeito, e subiu no palanque. No ato, todos os prefeitos foram atrás dele, mas não deixaram o outro subir. Eu vi o tal prefeito chorar. Ele nunca mais teria a bênção do padrinho.
 
Amanhece; foi uma noite estranha: o barulho do vento é um inconveniente com o qual é preciso se habituar. Estar em El Calafate é, acima de tudo, acostumar-se a suportar essa conflagração sonora.
É uma linda manhã. Poucas nuvens no céu, cachorros brincando na rua e o povoado inteiro em amável sossego: os turistas estão em excursão e as demais pessoas já devem estar trabalhando. Vou, então, procurar Javier Belloni, o prefeito, em seu local de trabalho.
Belloni é um homem de aparência comum – rosto redondo, camisa aberta, franja –, que sempre pertenceu à classe abastada de El Calafate e chegou à prefeitura em meio a um escândalo. Ele é réu em um processo por assassinato. O caso veio à tona quando o jornal Crítica de la Argentina – dirigido pelo jornalista Jorge Lanata e fechado em 2008 – falou do “crime de El Calafate” e deu detalhes sobre o ocorrido: numa madrugada de 1997, um bando formado por quatro “filhos do poder” espancou dois descendentes da etnia tehuelche.
Um deles morreu. Chamava-se Gabriel Hueicha, tinha 22 anos e, no dia da surra, estava com um primo que sobreviveu e contou tudo. O pai de Hueicha registrou queixa e, dez dias depois do assassinato, os quatro rapazes – entre eles Belloni, que nessa época tinha 26 anos – foram detidos e indiciados. Passados dois meses, porém, três deles – Belloni incluído – foram postos em liberdade por falta de provas, embora continuassem imputados, na qualidade de acobertadores.
Hoje o processo por assassinato está arquivado em Río Gallegos. E assim Belloni pôde se dedicar à política, primeiro como vereador, depois como prefeito. Em todos esses anos, só se referiu uma vez à morte de Hueicha. Foi durante sua campanha, quando disse que a lembrança do crime era muito dolorosa, mas que ele não tinha nada a ver com aquilo. Mais tarde, quando Gonzalo Sánchez, jornalista do Crítica de la Argentina, o procurou na prefeitura, Belloni se entrincheirou em seu gabinete e deu ordem para não deixar nenhum jornalista entrar.
Essa ordem se mantém até hoje, pelo menos para a mídia independente. Os funcionários de Belloni nunca responderam aos meus telefonemas, e é por isso que agora estou na prefeitura. É um prédio térreo, de estrutura simples, com vidraças e paredes recém-pintadas. Percorro alguns corredores e subo uma pequena escada até dar com uma porta trancada. Dentro há pessoas rindo. Bato. Sai um homem que se apresenta como Alex Vera, assessor de imprensa e chefe de cerimonial da prefeitura. Explico-lhe tudo, e Vera olha para mim com expressão de paisagem. Finalmente, diz que o prefeito está muito ocupado, mas que vai consultá-lo. Também diz que vai me telefonar. Nos despedimos com extrema cortesia, sabendo como são as coisas.
Vera fecha a porta e continua rindo. Eu me retiro. Na véspera, Susana Toledo – que foi colega de escola de Belloni e tem apreço por ele – havia explicado assim o silêncio do prefeito: “Se ele falar demais, cortam sua cabeça e o tiram do caminho. É assim que o kirchnerismo funciona.”
Saio da prefeitura e caminho pela avenida Libertador. Olho as vitrines, passo pelo cassino e acabo no Museu do Brinquedo, um espaço identificado na entrada com uma imagem de Perón e Evita e inaugurado faz uma semana por Cristina. “Temos que apoiar esse empresário que vem colecionando brinquedos há quarenta anos”, disse a presidente no ato de inauguração, referindo-se a Daniel Scardaccione, o dono de todo o acervo.
– Meu chefe juntou esses brinquedos durante muitos anos, ele adora brinquedos – diz a moça da entrada.
Bem diferente do que Rodolfo Novelle me disse ontem: Scardaccione comprou tudo em um leilão judicial, há quatro anos. E ele não é conhecido em El Calafate por seu amor aos brinquedos, mas por seus cheques. Scardaccione é agiota; as pessoas com dívidas de jogo, entre outras, recorrem a ele quando já não sabem mais de onde tirar dinheiro.
Entro no museu, e é muito bonito: parece a casa de Willy Wonka. Tento entender o que Perón e Evita têm a ver com isso. Até que chego à Sala Fundación Eva Perón, com mais de 250 brinquedos e jogos com que a fundação presenteava as crianças de todo o país. Além de brinquedos, há livros escolares (todos com imagens de Perón e Evita) e um manequim em tamanho natural de Evita sentada à sua mesa de trabalho, escrevendo um bilhete para entregar a um homem – outro boneco – que tem a mão estendida. Na carta pode-se ler o seguinte: “Nomeei-o para um cargo no Ministério da Nação. Seja leal e não falhe.”
A lealdade é a pedra fundamental do peronismo. Tanto que o dia mais importante para seus militantes – 17 de outubro – chama-se “Dia da Lealdade”. A data comemora uma grande mobilização operária e sindical em 1945 para exigir a libertação do então coronel Juan Domingo Perón. Atuando na Secretaria de Trabalho e Previdência Social, criada e dirigida por ele durante um governo militar, Perón havia promovido os direitos dos trabalhadores, obtendo assim uma gratidão sem precedentes. Por isso, quando foi preso, no quadro de uma luta entre setores conservadores e tendências mais populares, um grande número de trabalhadores sindicalizados ocupou o Centro da cidade, especialmente a Praça de Maio,conseguindo por fim que Perónfosse libertado. No ano seguinte, Perón seria eleito presidente da República.
Desde então, o Dia da Lealdade é entendido como o dia do nascimento do peronismo. E é também um ponto de inflexão, quando se estabelece um modo de entender o exercício da política: a lealdade deve ter uma compensação. E a traição tem suas consequências.
Agora, na recepção do hotel em que estou hospedada, um funcionário da área de turismo atualiza o dogma peronista, dizendo:
– Eu moro aqui e acabei de receber um crédito da Anses (Administração Nacional da Seguridade Social). Não posso correr o risco de lerem minhas declarações e perguntarem: “Qual é a desse cara?” Se eu falar mal, posso perder tudo. Difícil você achar alguém disposto a falar dando o nome.
O homem veio ao hotel porque preferiu não ser visto comigo em outro lugar. Agora está bebendo uma cerveja e observando como o sol, fincado sobre o lago, derrama uma luz tão pura que parece curar o povoado. Na primavera e no verão, diz ele, faz calor, mas venta muito. No inverno, em compensação, o ar é mais tranquilo, mas faz um frio polar, a baía congela, e só é possível fazer turismo no gelo. Ele não se queixa: afirma que a cidade cresceu, que recebeu muitos investimentos em hotelaria e que ela atrai cada vez mais gente, porque a Patagônia explodiu como conceito turístico. O homem diz que quer falar de turismo, não de política.
Pergunto como ele conseguiu sua casa.
– Passei anos tentando conseguir o meu terreno. Tive que juntar os documentos e apresentar um dossiê. Depois, quando estava tudo certo, fui ver o prefeito. Se você chega até ele, é porque já está tudo aprovado, mas mesmo assim tem que viver essa cena: o prefeito te recebendo, te medindo e dizendo que vai te dar a casa.
Ele parece constrangido, ou cansado. Talvez as duas coisas. Está entardecendo, e ele olha pela janela. Do hotel, construído nos altos, avista-se uma voluta de fumaça que se enrosca em direção ao céu pela margem esquerda da baía. Algo está pegando fogo, ou alguém está queimando algo, mas não é isso que é estranho: estranho é poder ver tudo. O terrível é poder ver tudo.
 
Hoje só se fala em Daniel Peralta. É manhã de 28 de novembro, quarta-feira, e Peralta, o governador de Santa Cruz, acaba de dizer coisas até há pouco tempo impensáveis. Falou contra a Ley de Lemas, que permite aos kirchneristas se manter no poder em Santa Cruz, disse que não participará de nenhum ato oficial em que Cristina esteja presente, disse que a União está sufocando a província de Santa Cruz, que La Cámpora – a juventude kirchnerista – está “brincando com a paz social”, e acusou o governo federal de obstruir a votação de duas leis de impostos sobre aextração de petróleo que, se aprovadas, teriam permitido a Santa Cruz um aporte de 40 milhões de pesos, o suficiente para a província sanear suas contas.
– Você chegou a El Calafate num momento insólito e imprevisível. Estamos vendo o súbito surgimento de um pós-kirchnerismo – diz Héctor Barabino, depois de me pôr a par das últimas notícias, bebericando um café.
Barabino é um jornalista de Río Gallegos respeitado por seus pares, e até pelo governo, por ter feito as maiores denúncias contra as redes de corrupção na província. Foi correspondente do jornal Crítica de la Argentina, trabalha em um canal de televisão de Río Gallegos e é responsável pela investigação do escândalo da Cencosud, mais tarde retomada por Alvaro de Lamadrid para processar Néstor Kirchner.
Embora Barabino more em Río Gallegos, teve a delicadeza de vir à vila para fazermos o que ele chama de “corruptour”: um passeio pelos principais marcos de corrupção de El Calafate. Mas ainda não saímos; estamos em um bar. Barabino – óculos leves, rosto afável – apoia os cotovelos sobre a mesa e sorri.
– Trabalho como jornalista há 28 anos e acompanhei a construção de dois presidentes. É incrível; estou fascinado com isso e também com o que está acontecendo agora. Sabíamos que o pós-kirchnerismo ia chegar. Eles ganharam as últimas eleições porque Kirchner morreu. Mas agora os efeitos do luto sobre o povo já estão passando e até os governadores fiéis começam a lhe dar as costas.
 
Barabino explica por que a resistência do governador Peralta tem tanto valor simbólico. Peralta foi um homem fiel ao kirchnerismo que durante décadas fez com eficiência tudo o que seus chefes mandavam, diz. Até que em 2010, depois de vários anos de favores, Kirchner lhe pediu um último gesto político: que se candidatasse à reeleição nas eleições provinciais do ano seguinte. Peralta obedeceu, sem prever as consequências. Embora ele encabeçasse a lista eleitoral, tanto Kirchner como La Cámpora indicaram os demais candidatos, sem permitir que Peralta incluísse ninguém de seu círculo mais próximo.
Como, ao contrário do que podia parecer, a subserviência de Peralta não era infinita, a relação entre ele e o governo federal começou a se deteriorar. Foi nesse contexto que, no final de 2012, Peralta se declarou um frontal opositor de Cristina Kirchner e protagonizou um gesto histórico dentro do kirchnerismo: o da deslealdade.
– Foi dignidade?
– Não sei se foi dignidade. O sujeito percebeu que La Cámpora não existe fora da cidade de Buenos Aires, que Néstor está morto e que Cristina vai mal das pernas. Aí deve ter pensado: “Quer saber? Vou fazer o que eu achar melhor.” E agora aí está, como se tivessem apagado sua memória com uma lobotomia.
Barabino fala sem filtros, e isso é um pouco divertido, mas também inquietante. Ele percebe minha aflição, sorri, e procura me tranquilizar:
– Não precisa se preocupar – diz. – Faça de mim um personagem. – Levanta-se. – Vamos lá.
Desce as escadas do bar e, a caminho do carro, atravessa o calçadão artesanal “Los Gnomos”. Na entrada, uma placa de metal anuncia: “Aldeia dos Gnomos. Fada madrinha, doutora Cristina Fernández de Kirchner.” O povoado inteiro está cheio de placas como essa.
– A plaquinha é o de menos. Aqui não tem um centímetro de chão que nãotenha a marca deles. El Calafate é a capital nacional da lavagem de dinheiro, um antro de corrupção, e eles não se dão ao trabalho nem de esconder isso – solta Barabino quando subimos no seu carro, um automóvel modesto que arranca rumo ao lago.
– Começou o corruptour – diz Barabino.
A primeira atração é a Costanera Néstor Kirchner, uma via pública recém-construída que margeia o lago Argentino e passa a poucos metros do hotel Los Sauces.
A obra, que custou 36 milhões de dólares ao Estado e foi realizada pela Austral Construcciones, a empresa de Lázaro Báez, permite chegar de Los Sauces até Punta Soberana, um terreno onde não há nada além de alguns lotes entregues a funcionários kirchneristas.
– Esta obra milionária é só um vaso comunicante entre as propriedades que os Kirchner têm longe do Centro – diz Barabino.
A avenida, como de costume, está vazia. Ninguém caminha por lá, porque no inverno faz muito frio e no verão venta demais. El Calafate, nas bordas, parece um povoado por terminar: capim seco, terra, pedras, e a cada tanto uma casa ou um imenso prédio cercado por um alambrado.
A paisagem vai passando até que, finalmente, chegamos ao bairro de Aeropuerto Viejo e àquilo que Héctor Barabino chama de “o marco mais emblemático da corrupção de El Calafate”. Trata-se do terreno vendido para a Cencosud, um pedaço de terra estéril onde agora se ergue uma placa anunciando: “Em breve Easy.”
Barabino desce do carro e começa a fotografar a placa. Até poucos dias atrás, acreditava-se que a Cencosud, a tal empresa chilena, desistiria de construir seu hipermercado Easy no terreno de Aeropuerto Viejo, para não ter seu nome ligado a um escândalo político. Mas, pelo jeito, mudaram de ideia. Em volta não há nada, ou quase nada: algumas casas ao longe e uma pousada em frente a uma avenida deserta. Esta, muito comprida, é a via de acesso a El Calafate. Mas é muito mais que isso.
 
 Na década de 90, o prefeito Méndez, com o aval do então governador Kirchner, decidiu fazer um aeroporto aqui. Chegaram a construir uma pista, que custou 7 milhões de dólares, mas logo se viu que foi malfeita. Depois de terminada a obra, os engenheiros constataram que a pista estava muito próxima das montanhas e que os pilotos teriam de fazer milagres para não bater o avião contra elas. O projeto foi abortado, e o aeroporto levado para outro lugar, a 20 quilômetros do povoado. O que sobrou é o terreno de Kirchner e essa avenida enorme.
– É a pista – diz Barabino. – Você está em cima da pista.
Olho para os meus pés: estou pisando a faixa que assinala a linha de decolagem. Logo levanto a vista. Barabino indica, ao longe, uma construção conhecida como “o shopping de Lázaro Báez”. Vamos até lá.É um edifício de seis andares que nunca abriu suas portas e que, visto de perto, com tanto vidro fumê, parece uma funerária ou um cassino. Em frente ao shopping, e ao contrário do resto das ruas do bairro, que são de cascalho, há uma avenida ampla, de mão dupla e perfeitamente asfaltada.
Quando, em 2008, o jornal La Nación perguntou a Néstor Méndez como ele explicava esse asfaltamento seletivo, o então prefeito respondeu o seguinte: “Evidente que foi Lázaro Báez que asfaltou a rua, pois a empreiteira é dele. Se eu quiser e tiver dinheiro, faço a calçada da minha casa, pago e pronto.” Mas anos depois, quando o jornalista Jorge Lanata ampliou a pergunta e o questionou sobre a entrega de terrenos valiosos por decreto, Méndez mudou o tom e deu uma resposta insólita: “Faço questão de esclarecer isso, Jorge, porque você não pode me julgar, assim como eu não posso julgar você […] muitas vezes, ouvi as pes-soas dizerem que você é homossexual, mas eu não posso dizer que você é homossexual, porque não te conheço.”
Héctor Barabino também participou dessa entrevista telefônica, ao lado de Lanata. Agora, enquanto dirige, ele recorda detalhes da conversa, sufocando o riso. Méndez, diz, sempre foi um homem sem formação política: começou em El Calafate dirigindo uma ambulância, e a vida, com suas voltas, o levou à função pública. Um percurso comum a outros personagens do kirchnerismo: gente sem tradição partidária, mas leal, ambiciosa e fácil de controlar.
– De certo modo, o que aconteceu com esses laranjas é a mesma coisa que está acontecendo com Máximo Kirchner – diz Barabino, sobre o filho de Néstor e Cristina. – Máximo não só não é um estadista como nem sequer parece se interessar pelo poder. Quem o conhece diz até que é um bom sujeito, que não gosta de luxo. Por isso você vê a casa que Máximo está construindo agora em El Calafate e pensa: “O cara não quer saber dessas coisas, não tem nada a ver com ele.”
Barabino para o carro em frente à futura moradia de Máximo. É de um tom rosa velho e, embora não seja lu-xuosa, é uma casa de veraneio bonita e sólida, de frente para a baía. O lugar, acrescenta, fica a poucas quadras do hotel Imago, um edifício de estilo alpino que lembra aquele de O Iluminado, de Stanley Kubrick, e que acumula tantas denúncias que já não posso nem vê-lo.
– Cansou? – pergunta Barabino. – Então vou te levar para o lugar onde vou erguer a minha futura mansão.
Ele sorri, com ansiedade no olhar. Alguns anos atrás, ele e a mulher fizeram as contas e viram que não teriam dinheiro para comprar uma casa em Río Gallegos, mas aqui sim. Então procuraram um terreno particular e o compraram por 17 mil dólares, que estão pagando a prazo. Planejam construir ali uma casa pré-fabricada de fibra de vidro, alumínio e madeira.
– É aqui – diz Barabino, enchendo o peito ao descer do carro. O lugar tem a marca da Patagônia pioneira; tudo em volta é pedra, vento e promessas: um dia chegará o gás encanado, um dia haverá esgoto.
– Compramos o lote porque tínhamos amigos no terreno ao lado e porque, como não era terra pública, não tínhamos que esperar eternamente o favor da prefeitura – diz, olhando para a baía.
Avistam-se o lago azul, as montanhas, os finos fios do degelo. O cabelo de Barabino, como o de todos em El Calafate, não para de sacudir.
– Olha como é lindo – diz ao vento.
Desta vez é verdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário