sexta-feira, 3 de maio de 2013

Boaventura de Sousa Santos e Deborah Duprat no Tendências/Debates

folha de são paulo

O "Diktat" alemão
Humilhar a arrogância alemã sempre envolveu destruição material e humana, tanto dos povos vítimas dessa arrogância como dos alemães
Provar que há alternativas ao "Diktat" alemão do nacional-austeritarismo (austeridade em vez de crescimento econômico) é o maior desafio que as sociedades europeias hoje defrontam.
A história europeia mostra de maneira muito trágica que não é um desafio fácil. A razão alemã tem um lastro de predestinação divina que o filósofo Fichte definiu bem em 1807, quando contrapôs o alemão ao estrangeiro desta forma: o alemão está para o estrangeiro como o espírito está para a matéria, como o bem está para o mal.
Perante isso, qualquer transigência é sinal de fraqueza. O próprio direito tem de ceder à força para que esta não enfraqueça.
Quando a Alemanha invadiu e destruiu a Bélgica (1914), sob o pretexto de se defender da França, violou o direito internacional, dada a neutralidade daquele pequeno país.
Sem qualquer escrúpulo, o chanceler alemão declarou no Parlamento: "A ilegalidade que praticamos havemos de procurar reparar logo que tivermos atingido o nosso escopo militar. Quando se é ameaçado e se luta por um bem supremo, cada qual governa-se como pode".
Essa arrogância não exclui alguma magnanimidade, desde que as vítimas se portem bem. Da nota que a chancelaria alemã enviou à chancelaria belga em 2 de agosto de 1914 --documento que ficará na história como um monumento de mentira e felonia internacionais-- constam duas condições que rezam assim:
"3) Se a Bélgica observar uma atitude benévola, a Alemanha obriga-se, de acordo com as autoridades do governo belga, a comprar contra dinheiro contado tudo quanto for necessário à suas tropas e a indenizar quaisquer danos causados na Bélgica pela tropas alemãs";
"4. Se a Bélgica se comportar de modo hostil às tropas alemãs e se, especialmente, levantar dificuldades à sua marcha... a Alemanha será obrigada, com grande desgosto, a reputar a Bélgica como inimiga."
Ou seja, se os belgas se deixassem instrumentalizar pelos interesses alemães, o seu sacrifício receberia uma hipotética recompensa. Caso contrário, sofreriam sem dó nem piedade. A Bélgica decidiu não ser boa aluna e pagou elevado preço: uma agressão tão vil que ficou conhecida como a "violação da Bélgica".
Dada essa superioridade "über alles", humilhar a arrogância alemã tem sempre envolvido muita destruição material e humana, tanto dos povos vítimas dessa arrogância como do povo alemão.
Claro que a história nunca se repete e que a Alemanha é hoje um país sem poder militar e governado por uma vibrante democracia. Mas três fatos perturbadores obrigam os restantes países europeus a tomar em conta a história.
Primeiro, é perturbador verificar que o poder econômico alemão está hoje convertido em fonte de uma ortodoxia europeia que beneficia unilateralmente a Alemanha, ao contrário do que esta quer fazer crer.
Também em 1914 o governo imperial pretendia convencer os belgas de que a invasão alemã do seu país era para seu bem e que "o governo alemão sentiria vivamente que a Bélgica reputasse [a invasão] como um ato de hostilidade".
Segundo, são perturbadoras as manifestações de preconceito racial em relação aos países latinos na opinião pública alemã. Vem à memória o antropólogo racista alemão Ludwig Woltmann (1871-1907), que, inconformado com a genialidade de alguns latinos (Dante, Da Vinci, Galileu, etc.), procurou germanizá-los.
Conta-se, por exemplo, que escreveu a Benedetto Croce para lhe perguntar se Giambattista Vico era alto e de olhos azuis. Perante a negativa, não se desconcertou e replicou: "Seja como for, Vico deriva evidentemente do alemão Wieck".
Isso tudo soa hoje ridículo, mas vem à memória sobretudo tendo em mente o terceiro fato perturbador.
Um inquérito recente aos alunos das escolas secundárias alemãs revelou que um terço não sabia quem fora Hitler e que 40% estava convencido de que os direitos humanos tinham sido sempre respeitados pelos governos alemães desde 1933.

    DEBORAH DUPRAT
    TENDÊNCIAS/DEBATES
    Sete décadas de luta
    Com a PEC das domésticas, ficamos todos livres da ironia de ter, numa Constituição libertária e igualitária, dispositivo tão mesquinho
    O processo constituinte foi palco de várias lutas emancipatórias.
    A luta das mulheres e dos negros, entre outras tantas, não foi só uma luta por identidade, mas de reconstrução e transformação das identidades históricas que herdaram.
    Eles insurgiram-se contra categorias essencialistas, biológicas, com a convicção de que estas haviam gerado e garantido a permanência das relações de poder que os oprimiram e marginalizaram.
    E, nesse processo profundo de emancipação, emerge uma Constituição que carrega dentro de si a percepção genuinamente utópica de uma comunidade livre e igualitária de indivíduos independentes.
    No entanto, de forma paradoxal e cruel, mostrou-se desejosa da submissão de uma categoria de sujeitos: as trabalhadoras domésticas.
    Dos 34 direitos garantidos às demais categorias profissionais, apenas 9 lhes foram reservados (o art. 7º da Constituição, depois de enumerar, em 34 incisos, os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dispõe, em seu parágrafo único, que aos empregados domésticos se aplicam apenas os direitos de salário mínimo, irredutibilidade de salário, 13º salário, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, licença à gestante, licença-paternidade, aviso prévio e aposentadoria).
    Esse enclave acabou por comprometer, em larga medida, a promessa constitucional.
    Foram criados dois mundos simultâneos e incompatíveis, nos quais passaram a conviver emancipação/sujeição, alteridade/unidade, autonomia/hegemonia. E reintroduziu-se, num ambiente libertário, aquilo que se buscava extirpar: nosso legado patriarcal e racista.
    Segundo dados do IBGE de 2009, na categoria de trabalhador doméstico, 94% são mulheres e 62% se declaram negras.
    O dado evidencia a persistência da visão naturalizada de que as mulheres estão aptas apenas a exercer atividades domésticas.
    Somam-se a esse estigma os pesos das práticas do Brasil escravocrata, que reservam às negras essas atividades, compreendidas como de pouca ou nenhuma qualificação técnica e intelectual.
    Não é por outra razão que o espaço onde se desenvolve o trabalho doméstico reproduz, em certa medida, a arquitetura da escravidão.
    Tal como ocorria com a senzala e a casa-grande, o quarto da empregada, além de em geral com pouco espaço e pouca ventilação, mantém a presteza servil, sem que a trabalhadora tenha controle sobre a jornada de trabalho e as horas de descanso.
    Foram necessárias sete décadas de luta, mas o Parlamento enfim ouviu suas vozes.
    Ganham as trabalhadoras domésticas e ganhamos todos nós, livres dessa ironia devastadora de ter, numa Constituição fortemente comprometida com a liberdade, a igualdade e a solidariedade, um dispositivo de conteúdo tão mesquinho.
    Essa importante decisão do Congresso Nacional vem somar-se ao capital --simbólico e real-- de reconhecimento de direitos e fortalecer lutas que, ainda hoje, se desenrolam na ordem da existência cotidiana e no interior do campo jurídico.

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