sábado, 4 de maio de 2013

Javier e Manoel - José Castello


O Globo - 04/05/2013

Ficções nos golpeiam, em lances súbitos,
quando menos esperamos.
Assim aconteceu comigo enquanto
lia “A velocidade da luz”, romance
do catalão Javier Cercas (Biblioteca
Azul, tradução de Sérgio Molina).
Antes de abrir o livro, li, em algum lugar, que
ele trata dos sofrimentos de um veterano da
Guerra do Vietnã, certo Rodney Falk. Trata, é
verdade. Admito: o tema não me entusiasmou.
Mas a literatura de Javier (1962) nunca avança
na direção que esperamos. Rodney é, de fato,
um personagem forte, que nos envolve em um
manto de espinhos. Mas o golpe me veio de outro
lugar.

Temos, sempre, uma maneira torta de ler — e
é através deste empenamento que entramos em
um livro. Ele é muito sensível às circunstâncias.
Vejam o meu caso. Li “A velocidade da luz” em
Cuiabá, onde estive para uma palestra sobre
Manoel de Barros. Às vezes, parava de ler o romance
de Javier para reler poemas de Manoel.
Esses saltos produzem interferências — como os
chiados dos velhos rádios. De alguma forma (retorcida,
ela também), a voz de Manoel se infiltrou
em minha leitura de Javier. Acho que o li como
se fosse um poeta. Talvez ele seja um poeta.

À entrada no romance, uma frase da austríaca
Ingeborg Bachmann (1926-1973) me alertava:
“O mal, não os erros, perdura”. Ingeborg empurra
a dor para além das circunstâncias (ou erros),
guardando-a em uma esfera indiferente ao homem
e a seus atos — que a poeta chama de mal.
Mas não penso no mal, prefiro pensar no acaso
que, de qualquer forma, rege nossas vidas sem
se importar com o que dele pensamos. O acaso:
tão insensível quanto o mal. Eis onde quero chegar:
li o romance de Javiercomo um poema que
faz pensar. Não pensar a respeito da guerra, mas
(seguindo minha deformação pessoal) a respeito
da literatura. É o que faz também Javier, como
nas translações operadas pelas metáforas: trata
de uma coisa, para falar de outra. Isso se chama
inquietação.
Depois de conhecer o veterano Rodney, o narrador
de “A velocidade da luz” lhe conta que está escrevendo
um romance. Rodney lhe pergunta de
que o livro trata. “Bom, na verdade ainda não sei
ao certo”, diz o rapaz, constrangido. Ouve, então,
um comentário que o surpreende: “Gosto disso”.
Explica-se Rodney: “Se você soubesse de antemão,
seria péssimo: só diria coisas que já sabe,
que é o que todos sabemos”.
Prossegue em sua reflexão: “Se,
ao contrário, você ainda não sabe
o que quer dizer mas está
louco o bastante, ou desesperado,
ou com coragem suficiente
para continuar escrevendo talvez
acabe dizendo algo”. Fala o
veterano Rodney da indispensável
dose de insensatez inerente
a toda ficção. Mas não vou aqui
fazer a apologia da loucura: o
próprio Rodney é um exemplo
de que ela — indiferente e fria como o mal — tanto
pode nos alimentar, como pode aniquilar.

Depois de ver seu irmão Bob morrer durante os
combates no Vietnã, Rodney começa a delirar. Desenvolve
então uma abominável teoria a respeito
da beleza da guerra. “É justamente essa verdade
que todo mundo aqui conhece, mas ninguém
quer admitir. Que tudo isso é belo: que a guerra é
bela, que o combate é belo, que a morte é bela”. A
dor extrema leva Rodney a conceber uma repulsiva
poesia da morte. Pior: está convencido de que,
através dela, fala não de uma dor particular, mas
de uma verdade universal. “O que me dá nojo não
é que tudo isso seja verdade, e sim que ninguém
diga essa verdade”. Para ele, a verdade é sempre
absurda, e por isso não a suportamos.
Conclui: “A beleza da
morte é uma verdade que ninguém
diz porque soa falsa”.

Tempos depois, dialogando
com o jovem romancista que
protagoniza o romance de Javier,
um desalentado Rodney começa
a entender que o problema,
mais do que na palavra
“morte”, talvez esteja na palavra
“tudo”. Consegue dizer ao jovem
amigo, então, que o conhecimento
da verdade não é tudo — até porque ninguém
conhece tudo — e que o que vale, no fim das
contas, é perseguir os vestígios de nossa verdade
particular. Explica ao rapaz: “O que quero dizer é
que quem sabe aonde vai nunca chega a lugar nenhum,
e que a gente só sabe o que quer dizer
quando isso já foi dito”. Contra a totalidade da
guerra, que deseja impor o domínio do Tudo, o
veterano Rodney vislumbra, agora, a beleza das
pequenas coisas (ressoam os poemas de Manoel).
Esta beleza se expressa nas vacilações do escritor,
que nunca sabe ao certo em que direção
caminha, e só por isso, porque não sabe tudo
(aliás: porque não sabe quase nada) consegue
escrever.

Diz Rodney ainda: “As histórias não existem. O
que existe, sim, é quem as conta”. Pois é isso que
sinto durante a leitura do romance de Javier. Escondido
sob os relatos de guerra, disfarçado sobre
as reflexões a respeito do mal, entrevejo o
próprio Javier, solitário e pequeno (Manoel), lutando
para escrever seu livro. Como se eu estivesse
em seu escritório, escondido atrás de uma
cortina, vigiando seu combate com os manuscritos.
Seguindo sua luta lenta, parcial, sua luta acidental
(e cheia de acidentes), para enfim dizer.
Escoltando-o em seu esforço para formular algo
que não sabe o que é. Um homem que tenta dizer
o que desconhece.

Outro momento que me interessa muito no romance
de Javier é quando Rodney adverte o narrador
não a respeito dos riscos do fracasso, mas
a respeito dos riscos do sucesso. Este sim, o desejado
sucesso, pode ser mortal. Na luta para se
tornar um escritor, o maior risco é que você pode
acabar conseguindo, lhe diz Rodney. Risco ainda
maior: você pode ser bem sucedido. E, nesse
caso, você fugirá todo o tempo do lugar comum,
porque se sentirá sempre obrigado a ser original
e genial. “Só que as idéias não viram lugares-comuns
por serem falsas, mas por serem verdadeiras”,
ele o adverte. Pequenas verdades, às vezes
desprezíveis, indiferentes ao Tudo: delas a literatura
se faz.

A literatura — ainda agarrado ao romance de
Javier, retomo os poemas de Manoel de Barros —
é o manejo do pequeno. A velocidade da luz faz
isso: encurta as longas distâncias. Anula os grandes
espaços. Espreme a arrogância do Tudo. E
nos devolve (Javier nos entrega isso) nossa desajeitada
e bela existência.

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