quarta-feira, 1 de maio de 2013

'Ronda' ofuscou repertório vasto e subestimado - Fabio Victor

folha de são paulo

OPINIÃO
Obra musical de Paulo Vanzolini, morto no domingo, é painel extenso das pequenas tragédias que nos cercam
FABIO VICTOREDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"Ao gravar "Praça Clóvis", nesse disco lendário que é "Onze Sambas e uma Capoeira", Chico Buarque percebeu, e ajudou a iluminar, já em 1967, a genialidade de Paulo Vanzolini, morto no domingo aos 89 anos.
A crônica do sujeito que guarda renitente na carteira o 3 x 4 da mulher que o abandonou, mas, ao ter a carteira batida por um "lanceiro" numa praça no coração de São Paulo, vê-se aliviado --porque "já devia ter rasgado e não podia" o retratinho-- é uma das joias de uma obra subestimada, que as clássicas "Ronda" e "Volta por Cima" ajudaram a ofuscar.
Vanzolini nos mostrou que, essencial à existência (ou indissociável dela), a amargura pode ser companheira e que as tragédias miúdas estão por todo lado.
A vida, nos soprou ele, é uma tragédia, mas não convém superestimá-las (nem a vida nem as tragédias).
Talvez daí a concisão, letras elegantes que davam o recado em poucas linhas.
No seu painel urbano, que vai muito além da fossa, há espaço para mortes bestas, por ciúme, como a de "Cravo Branco"; há espaço para "losers" e desalentados ("Bandeira de Guerra", que narra o romance entre "uma mulher em hora perdida" e "um homem em ponto morto", é o hino dos amores tortos deste mundo) e para tormentos mais densos, como em "Morte É Paz".
Amantes na sarjeta, mas orgulhosos ("Falta de Mim"), machistas que fariam amenos alguns versos de Vinicius ("Mulher que Não Dá Samba") --o desfile é extenso, o olhar é de quem viveu a vida.
Vanzolini --desafinado e que não tocava nenhum instrumento-- fazia coisas assombrosas nos intervalos da atividade de grande cientista.
Parecia um homem simples, que amava coisas que importam --mulheres, amigos, a ciência, a noite, a boemia.
Numa das vezes que pude avistá-lo, na pré-estreia do documentário "Um Homem de Moral" no então Espaço Unibanco, em 2009, convidaram o diretor (Ricardo Dias) e uma acadêmica para um debate sobre a obra de Vanzolini em seguida à exibição do filme.
Ele parecia desconfortável com a solenidade e o escrutínio acadêmico. Pediu na hora uma cerveja, e alguém correu à coxia para buscar uma lata --só então pareceu mais aliviado.
Em todas as últimas ocasiões que o avistei, já debilitado, tomava seu copo, a cerveja como uma breve vacina à náusea do mundo.
A leveza com que tratou o peso dos dias certamente permitiria que cantasse na despedida um dos seus melhores sambas: "Quando eu for, eu vou sem pena/ Pena vai ter quem ficar".

    Nenhum comentário:

    Postar um comentário