terça-feira, 4 de junho de 2013

Maria Esther Maciel - O tango como remédio‏


Estado de Minas: 04/06/2013 

São vários os poetas a que recorro em horas de ócio ou solidão. Manuel Bandeira é um deles. Ontem mesmo, peguei o volume de suas obras completas e o abri ao acaso à procura de algo que nem sabia muito bem o que era. Foi quando encontrei um poema do qual já tinha quase me esquecido: o “Pneumotórax”. Nele, um homem acometido de “febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos” manda chamar o médico e, após repetir o famoso “trinta e três” e respirar fundo, recebe um diagnóstico pouco promissor sobre seus pulmões. Ao indagar sobre o que era melhor fazer no caso, recebe do doutor uma resposta desconcertante: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.

Fiquei pensando, com um risinho íntimo, sobre essa recomendação médica. E achei que o médico tinha acertado em cheio. Tango é, de fato, um santo remédio. Mas se tal recomendação um dia me fosse prescrita, acho que ia preferir outro verbo: em vez de “tocar”, “dançar”. Isso porque, além não saber manejar nenhum instrumento musical, sempre quis aprender a dançar tango. Cheguei a ensaiar alguns poucos passos com meu pai, um exímio dançarino que aprendia qualquer ritmo só de observar as pessoas dançando. Até troféus ele ganhou em bailes da cidade, por causa de suas habilidades na pista de dança. As mulheres, encantadas, faziam fila para dançar com ele nas festas. Era chamado de “o pé de valsa”. Foi ele quem me ensinou que o tango requer ardor e altivez ao mesmo tempo. “Quem dança tango não pode sorrir enquanto dança”, também dizia. E, de fato, ele tinha razão: o tango, mesmo com seu vigor, elegância e sensualidade, surgiu como uma dança passional, trágica. Nascido nos subúrbios de Buenos Aires, esteve muito vinculado a conflitos por amor, ciúme e traição, embora esse aspecto tenha se diluído ao longo dos anos. Não à toa, o tango já foi definido como “um pensamento triste que se pode dançar”. Porém, ao dançar com meu pai, era quase impossível não sorrir. A alegria era tanta que a dança deixava de ser trágica para se tornar um remédio para qualquer desalento.

Com o tempo, o tango foi se tornando mais coreográfico. E nem por isso perdeu sua beleza. Assim como a música incorporou novos elementos vindos de outros ritmos (penso aqui na força do jazz que atravessa os tangos do genial Astor Piazzolla), a dança também foi modificada, graças ao contágio de outros estilos. Que o diga o inesquecível filme Tangos, de Fernando Solanas, sobre o exílio de argentinos na França durante a ditadura militar da Argentina. Dedicado a Gardel, foi lançado na década de 1980, trazendo belas e modernas coreografias, ao som de Piazzolla.

Nos bairros populares de Buenos Aires ainda é possível encontrar o tango à moda antiga. Quando estive lá da última vez, vi por acaso um casal que dançava na rua de um desses bairros. Ele, de costeletas grossas, parecia ter mais de 70 anos; ela, com um vestido antiquado, trazia uma flor vermelha nos cabelos brancos. Dançavam com espontaneidade e energia, acompanhados de um pequeno grupo de músicos já idosos. Todos, totalmente entregues ao momento. Foi aí que entendi melhor o “espírito” do tango, com toda a sua força e paixão.

Pelo visto, o médico de Bandeira era mesmo dos bons.

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