quinta-feira, 20 de junho de 2013

Marina Colasanti - A folha que tomba‏


A folha que tomba
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com

Estado de Minas: 20/06/2013 


Na sala vazia e em penumbra, eu acariciava a cachorrinha deitada no sofá e lhe dizia palavras ternas, palavras de amor, quando ouvi um ruído próximo, sem farpas. Estávamos sozinhas as duas, noite. Olhei ao redor, buscando a fonte do ruído. Uma folha grande, de costela-de-adão, havia abandonado o talo no vaso de vidro, e caído no chão.

De onde vem a ordem para que algo se desprenda e tombe? Certa vez, tomada por um desespero que não conseguia vencer, passei a noite inteira em uma floresta. Foi o refúgio que encontrei para a dor. E entre troncos e arbustos, a noite inteira ouvi em pleno silêncio o farfalhar de uma e outra folha, que, leve, deixava galho e vida. Só algumas se desprendiam, na exatidão do tempo chegado. Saberiam as outras daquela partida? Temeriam ser chamadas? Saberiam elas mesmas, com antecedência, o que lhes ia acontecer?

Há, no meu prédio, uma senhora de idade avançada que todos os dias percorre o corredor do andar seguidas vezes, para fazer exercício. Eu lhe quero bem e a cumprimento, conversamos carinhosamente, e cada vez ela me diz, estou andando, preciso me exercitar, mas estou bem. O pedúnculo da sua vida continua agarrado ao galho, e ela caminha para manter viva a seiva. Mas haverá um momento – que ela teme e tenta adiar – em que a ordem será dada. De nada adiantarão, então, suas discretas caminhadas.

Um momento, e não outro. A folha estava no vaso há semanas e começava a amarelar nas beiras. Outras, no mesmo vaso, igualmente perderam o frescor com que as trouxe da casa de montanha. Mas as outras ainda estão lá, talo metido entre água e vidro, enquanto aquela, aquela única que se desligou da origem, jaz sobre o tapete.

Minha cachorrinha e eu envelhecemos dia a dia. Como as folhas. O tempo não passa da mesma maneira para nós duas. Nossas beiradas são outras. Olho a data de nascimento no pedigree dela, e conto o tempo. Ela não olha o meu, que não o tenho, nem conta datas. Mas embora sem formular o pensamento dessa forma, teme me ver abandonar o vaso. Ambas estamos a caminho.

Todos os dias varro o meu terraço. Todos os dias há folhas pelo chão, flores caídas, algumas ainda frescas que o vento vitimou, outras derrubadas ante tempo por mão de chuva. Se eu não cuidar, entopem-me os ralos. Então cuido. Varro com carinho, junto num montinho aqueles cadáveres vermelhos e verdes e rosa, separo as flores de jasmim com que depois perfumarei o chá, o resto recolho nas mãos em concha. E despejo nas jardineiras minha colheita morta, numa espécie de enterro de superfície.

A chuva caiu para todos, o vento vindo de Sudoeste atacou com idêntica fúria. Mas na manhã molhada há folhas nascentes nos ramos, flores abertas entre folhas. O momento da chamada só chegou para alguns. Sem que quem chama faça ouvir sua voz.

Não recolhi a folha de costela-de-adão da minha sala. Por respeito, deixei-a para dormir seu último sono ali mesmo, sobre as felpas macias do tapete que a acolheu. Amanhã, quando não despertar no sol, quando não for mais uma entidade familiar, a que me ouviu dizer palavras de amor à cachorrinha, quando for apenas uma folha morta semelhante a tantas folhas mortas de que o cotidiano se desfaz, a jogarei no lixo, ou a rasgarei para que com seus fragmentos alimente outras plantas.

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