domingo, 21 de julho de 2013

Antonio Prata

folha de são paulo
Diário
Relatividade #4: Já estamos em casa há extenuantes 24 horas e parece que foi ontem que chegamos
Ou noitário? Tanto faz, já que dia e noite são conceitos ultrapassados e sem sentido neste insone fluxo neonatal. Vivo num JÁ contínuo em que se alternam momentos de paz (ela mama, ela dorme) e guerra (ela urra, ela urra, ela urra). Durante os armistícios, abro o laptop e tento gravar algumas memórias da caserna, para que não se percam nesta terra de ninguém em que vagam meus combalidos neurônios. Opa, ela urra: fecho o laptop, besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras.
-- Segunda, circa 2h AM: Ela dormia como um anjo e acordou como uma motosserra. Chorou ininterruptamente por 40 minutos --ou quatro horas? Tivemos vergonha de ligar para o pediatra só por causa de um choro, de modo que decidimos levá-la diretamente ao hospital. Na porta de casa, contudo, ouvimos a trombeta celeste anunciando a volta do Senhor e o fim das tribulações terrenas: um pum. E com o pum veio a paz, e com a paz, o sono.
-- Babação #35: Imagino aquele punzinho se espalhando pela atmosfera e não consigo deixar de pensar que o mundo agora é um lugar melhor. É grave, doutor?
-- Ideia #9: O inventor da babá eletrônica deveria ganhar o Nobel.
-- Babação #36: Abro as fraldas com a curiosidade de quem confere a caixa de entrada do e-mail. Haverá alguma mensagem? Qual a cor, a consistência? Quando fecho os olhos, todos os cocôs desfilam pela memória, como num baralho ilustrado por Pollock. É muito grave, doutor?
-- Segunda, 8h32 AM: Ela mama com a sede de um náufrago. Então, sem aviso prévio, joga a cabeça para trás e dorme, como se o último gole de leite fosse um trago de ópio.
-- Desafio #149: Sem que houvesse qualquer debate, decretou-se que eu era o encarregado pelo banho nesta casa. Não acho que eu seja a pessoa mais indicada para a tarefa. São vários procedimentos de alta complexidade e periculosidade num curto espaço de tempo. Aprender a dirigir foi mais fácil.
-- Mantras: "O movimento do algodão é sempre do limpo pro sujo". "Jamais se afaste do trocador." "Sempre sustente a cabeça." "Relaxa, isso é cólica." "Relaxa, isso é cólica." "Relaxa e tenta acreditar: isso é cólica."
-- Mistério #91: Como as pessoas fazem para criar filhos e, ao mesmo tempo, trabalhar? Tolstói teve 13 rebentos e "Guerra e Paz" tem 2.536 páginas (aposto que Tolstói não era o encarregado pelo banho na casa dele).
-- Ideia #9B: O inventor da babá eletrônica deveria ser guilhotinado.
-- Ideia de livro infantil, para o caso improvável de algum dia eu voltar a trabalhar: Os heróis Colostro e Bepantol lutam contra os vilões Mecônio e Icterícia.
-- Observação #78: Todos os clichês fazem sentido. Em cada bocejo contemplo O Grande Movimento do Universo. Ao lado do berço, sussurro: "Olivia, você não existia e agora existe: olha só o que você fez, sua doida!".
-- Correção #1: Filhos? Melhor tê-los! Mas só os tendo é possível sabê-lo.
-- Relatividade #4: Já estamos em casa há extenuantes 24 horas e parece que foi ontem que chegamos.
-- Dúvida atroz: devo me agarrar ao "calma que passa!" ou ao "aproveita que passa rápido!"?
Deixo para pensar mais a respeito no próximo armistício: agora, ela urra; fecho o laptop, besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras.

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