domingo, 11 de agosto de 2013

A vitória do pênis cabeçudo - Reinaldo José Lopes

folha de são paulo
CIÊNCIA
A vitória do pênis cabeçudo
A anatomia masculina e outras artimanhas evolutivas do sexo
REINALDO JOSÉ LOPES
RESUMO
Livros do americano Jesse Bering e do britânico John Maynard Smith analisam o sexo por prismas complementares. Bering, com humor de banheiro masculino, comenta a importância do formato do pênis na evolução da espécie. Já Smith, com equações e dados experimentais, investiga por que o sexo existe na natureza.
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Que ninguém duvide da importância dos sex shops para testar hipóteses sobre a evolução da nossa espécie --em especial se estivermos falando das origens da anatomia peniana.
Um exemplo banal: por que diabos o pênis humano, em especial quando o prepúcio é recolhido e a glande fica exposta, tem esse curioso formato de cogumelo? A pergunta é pertinente porque nossos parentes mais próximos no reino animal, os grandes macacos, ostentam membros relativamente finos e "retos", mais parecidos com uma banana-nanica.
Pensa daqui, pensa dali, o psicólogo evolucionista Gordon Gallup Jr., da Universidade do Estado de Nova York em Albany, propôs que a chave para entender a esquisitice do pênis do Homo sapiens residia no fato de que a glande costuma ter diâmetro consideravelmente maior do que a haste do membro masculino.
Imagine uma mulher que copula com dois parceiros, com intervalo relativamente curto entre eles.
Durante a pré-história da nossa espécie, quando camisinhas eram item inexistente, estava armado o cenário para uma competição de espermatozoides entre os moços -- a não ser que a glande em forma de cogumelo do segundo parceiro servisse como uma espécie de vassoura, armazenando debaixo de si o sêmen do rival e puxando-o para fora da vagina durante o coito.
Do ponto de vista da teoria da evolução, a lógica é impecável. Mas como testar experimentalmente a ideia?
VIBRADORES
Visitando um sex shop, é claro. Gallup Jr. e companhia adquiriram um conjunto completo de vibradores --com e sem glande simulada-- e vaginas artificiais anatomicamente realistas.
De volta ao laboratório, produziram uma caldeirada de "sêmen artificial" (farinha de trigo misturada com água e fervida). E, após "lubrificar" devidamente a vulva de borracha, verificaram que tipo de consolo era o mais apropriado para remover o esperma falso.
Vitória dos pênis "cabeçudos", que conseguiam retirar mais de 90% do líquido da vagina de brinquedo, contra apenas 35% de eficiência do vibrador sem glande. Está tudo registrado nas páginas da revista científica "Evolution and Human Behavior". E também no livro "Devassos por Natureza: Provocações sobre o Sexo e a Condição Humana" [trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 304 págs., R$ 44,90], do psicólogo americano Jesse Bering.
As reflexões sobre a importância evolutiva do formato do pênis são bastante representativas da temática do livro, ainda que não de sua linguagem --se você achou os parágrafos acima galhofeiros, é só porque não leu o relato original de Bering, um sujeito com senso de humor típico de banheiro masculino.
Por outro lado, a disposição para usar piadas é coisa que inexiste em "A Evolução do Sexo" [trad. Antonio Carlos Bandouk, ed. Unesp, 262 págs., R$ 29], clássico escrito em 1978 pelo biólogo britânico John Maynard Smith (1920-2004) que só agora chega ao país.
Usando os dados experimentais e de campo mais refinados que havia em sua época, Maynard Smith investigou por que, afinal de contas, o sexo existe na natureza. Deu à pesquisa contornos panorâmicos, que vão das trocas de genes entre bactérias às origens do tabu do incesto entre os membros da nossa espécie.
Apesar das diferenças brutais de estilo, os dois livros se complementam. Com seu estilo pop, Bering apresenta suavemente ao leitor um dos grandes pilares do pensamento evolutivo: encarar a anatomia e o comportamento dos seres vivos sob o prisma da engenharia reversa.
Trocando em miúdos: diante de características biológicas intrincadas, o cientista dessa área tenta compreender tanto questões funcionais (o famoso "para que serve?") quanto de causalidade, ou seja, até que ponto, em última instância, essa funcionalidade tem um impacto na seleção natural.
É mais ou menos o que também faz Maynard Smith, com a ressalva importante de que o britânico não quis poupar o leitor das equações que despeja em diversas páginas do livro (embora a maior parte da obra esteja escrita em prosa clara, ainda que árida).
O arcabouço matemático, de todo modo, é necessário porque o sexo tem um custo --medido naquela que é por excelência a moeda de troca da evolução: o sucesso reprodutivo.
Ocorre que, do ponto de vista dos "interesses" de cada organismo (as aspas são necessárias porque se trata quase sempre de interesses inconscientes), reproduzir-se por meio do sexo equivale a um desperdício de material genético, já que a prole sempre terá apenas 50% do DNA de cada genitor.
E é preciso ainda levar em conta o custo considerável de procurar um parceiro, disputar as atenções dele com rivais e sobreviver à cópula, que muitas vezes deixa o casal em posição vulnerável.
Sob esse prisma, a opção mais razoável, à primeira vista, seria clonar a si mesmo e pronto. Mas o curioso é que essa estratégia, a partenogênese (em grego, "nascimento virgem"), é bastante rara entre animais e plantas. E sua distribuição nos grupos de seres vivos sugere que ela costuma surgir de modo esporádico, a partir de ancestrais com vida sexual "normal".
Maynard Smith usa modelos matemáticos para examinar as possíveis razões para esse paradoxo. O mais provável é que o sexo seja um mecanismo para "embaralhar" genes de pais e mães com eficiência, de maneira que a prole carregue em seu DNA armas mais diversificadas para enfrentar contingências como novos parasitas, predadores ou eventuais mudanças ambientais.
Centenas de milhões de anos depois que o primeiro organismo desenvolveu essa estratégia, chegamos a mamíferos de cérebro complexo como nós e os demais primatas, cujas estruturas mentais, além da anatomia, também parecem ter sido buriladas para maximizar o sucesso reprodutivo --universo que é a especialidade de Jesse Bering.
Autor de um blog no site da revista "Scientific American", ele domina a arte de escolher os detalhes mais picantes dessa temática e "descascá-los" de forma cientificamente sólida.
Ou, ao menos, tão sólida quanto possível. A área de especialidade de Bering, a psicologia evolucionista, costuma sofrer a acusação, muitas vezes injusta, de construir cenários fantasiosos.
Como não é possível viajar no tempo para registrar em filme a vida sexual dos hominídeos, e uma vez que os indícios da evolução da mente e do comportamento com frequência só podem ser flagrados de maneira indireta, há quem veja a psicologia evolucionista como um exercício de imaginação divertido, mas que pode ser usado para provar que qualquer coisa e o seu contrário são produtos da seleção natural --tanto o cuidado com a prole quanto o infanticídio, tanto a monogamia quanto a infidelidade.
ANTIDEPRESSIVO
Às vezes, Bering incorre nessa caricatura, ainda que com resultados que injetem sabor no texto, como quando ele aborda a literatura sobre os efeitos antidepressivos do esperma humano (mais um estudo, digamos, seminal de Gordon Gallup Jr.) ou quando saúda as habilidades do músculo cremastérico, aquele que faz os testículos humanos se encolherem para perto do corpo num dia frio.
Hipótese de trabalho dos cientistas nesse caso: o músculo seria o responsável por manter a temperatura testicular num nível nem muito quente, nem muito frio, de maneira a otimizar produção e sobrevivência dos espermatozoides.
O psicólogo, no entanto, consegue abordar temas surpreendentemente sérios por baixo dessa fachada de deboche. Um deles é o da origem das preferências sexuais humanas e dos preconceitos que as cercam --talvez não por acaso, já que Bering é homossexual.
É difícil, por exemplo, não pensar em alguns candidatos ao teste descrito pelo pesquisador no capítulo sobre homofobia. Basicamente, amarra-se o pênis do sujeito a um sensor e expõe-se o voluntário a imagens pornográficas, de natureza tanto hétero quanto homossexual. Surpresa: quanto mais a pessoa declara ter raiva de gays, maior a chance de ela ter uma ereção assistindo a homens fazendo sexo com homens.
Nesse ponto, os dois livros voltam a se aproximar. Não há como a homossexualidade (ao menos se for a prática exclusiva) aumentar o sucesso reprodutivo dos homens gays, embora ela se manifeste a partir de uma base biológica que compartilha com a sexualidade hétero (gays também sentem ciúmes, por exemplo).
Do mesmo modo, organismos praticantes da partenogênese volta e meia evoluem em condições especiais, mesmo que o sexo seja uma estratégia mais vantajosa, em média. A biologia é o reino da contingência, e não há uma seta única apontando o rumo do progresso --ainda bem, ao menos para quem advoga a diversidade.

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