segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Cheia - Marion Strecker

folha de são paulo
Continuo cheia. Cheia de tecnologia. Cheia de pessoas que acham que estão inventando a roda. Cheia de empreendedores cujo grande objetivo na vida é ficar rico. Cheia de espertalhões que criam problemas para vender soluções. Farta dos que espalham terror para vender segurança.
Estou cada vez mais cheia de fazer cadastros, preencher formulários, alimentar estatísticas. Não suporto marketing invasivo. Não aceito como herança tanto lixo industrial.
Alpino
Hoje não tolero mentiras nem grandes nem pequenas, como dizer que me descadastrou quando não me descadastrou. Não vou aceitar truques baratos nem caros, daqueles que me obrigam a fazer o que não escolhi ou ser alvo do que não quero.
Não suporto propaganda enganosa. Não aceito proselitismo político. Não aguento intolerância. Não perdoo distorções.
Não quero ver anúncios em português nos sites que leio em inglês, não quero ver anúncios em inglês quando estou em português. Não quero ser perseguida por propaganda nem lojistas que tentam me vender produtos que acabei de pesquisar.
Hoje não quero ser amiga de todo o mundo. Não quero que todo o mundo goste de mim. Não quero ter razão. Não quero ser popular. Não quero ser forçada a gostar de nada nem de ninguém.
Hoje não quero clicar o botão "like". Não quero curtir marca nenhuma. Não quero seguir pessoa jurídica. Não quero que marquem meu nome em fotos em que não apareço.
Hoje não quero que ninguém me veja como trampolim. Não quero participar de avaliações 360 graus. Não quero responder a nenhuma pesquisa. Preencher nenhum questionário. Não quero instalar mais um aplicativo de aniversário.
Hoje não quero conhecer uma nova rede social. Não acho que tudo na vida tenha de se transformar em software ou sistema. Não acredito que tecnologia seja solução para todos os problemas.
Não aceito que o governo tenha de gastar mais de R$ 1 bilhão para bloquear celular nas cadeias. Não acredito que o Metrô construiu um muro no meio de uma ciclovia por engano. Não entendo por que preciso fazer cadastramento biométrico para poder continuar votando se nem tenho ouvido falar de fraude eleitoral.
Hoje não quero ser obrigada a votar. Não quero precisar de senha, contrassenha e token eletrônico para usar minha conta. Não quero ser escaneada, monitorada, fotografada, gravada, fichada, numerada. Não quero crachá, fila VIP, privilégios. Não aceito propina, chantagem, pressão.
Hoje não quero ler cartazes com frases edificantes. Não quero ver fotos de bichinhos. Não estou com paciência para teste de Touring. Não vou digitar caracteres esquisitos para me logar em sistemas.
Não quero fazer check-in nem passar no raio-x. Não vou aceitar notificações. Não quero explicações. Não vou atualizar software nenhum. Não quero que fiquem mudando botões de lugar. Não gosto que vendam meu contato para ninguém.
Hoje não quero multas, advertências, agressões. Não quero aprender a usar mais um controle remoto. Não vou ler contratos em letras miúdas. Não quero mudar o padrão da tomada. Não quero gambiarra nem benjamim.
Marion Strecker
Marion Strecker é jornalista e cofundadora do UOL. Começou sua carreira como professora de música e coeditora da revista Arte em São Paulo. É formada em comunicação social pela PUC-SP. Trabalhou na Redação daFolha entre 1984 e 1996, onde foi redatora, crítica de arte, editora da 'Ilustrada', editora de suplementos, coordenadora de planejamento, coordenadora de reportagens especiais, repórter especial, diretora do Banco de Dados, diretora da Agência Folha e coautora do Manual da Redação. É colunista da Folha desde 2010. Pioneira na internet no Brasil, liderou a equipe que criou a FolhaWeb em julho de 1995 e foi diretora de conteúdo do UOL de 1996 a 2011. Viveu em San Francisco, Califórnia, de julho de 2011 a julho de 2012, atuando como correspondente do portal. Mudou-se para Nova York, onde começou a escrever um livro sobre internet, previsto para sair em 2013 pela Editora Record. Atualmente vive em São Paulo.

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