segunda-feira, 19 de agosto de 2013

"Orestes" une ficção e realidade para mostrar consequências da ditadura nos dias de hoje

folha de são paulo
FERNANDA MENA
DE SÃO PAULO
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"Choque elétrico é fato?", ouviu o coronel Walter da Costa Jacarandá, ex-integrante de órgãos de repressão do regime militar (1964-85), durante sessão da Comissão da Verdade ocorrida há cinco dias, no Rio.
"É fato", respondeu o militar, o primeiro a assumir publicamente ter participado de sessões de tortura durante a ditadura.
Para o cineasta Rodrigo Siqueira, 40, diretor do documentário "Terra Deu, Terra Come" (2009), vencedor do festival É Tudo Verdade de 2010, a acareação entre coronel e vítimas de tortura pelo regime poderia estar em seu novo filme, "Orestes".
O longa mistura ficção e realidade. Inventa um crime a partir de fatos reais e o leva a debate público e a tribunais do júri simulados, em que juízes, promotores e advogados de defesa renomados tiveram liberdade para tecer teses sobre o caso sem sugestões ou interferências do diretor.
O crime: em 19 de julho de 2010, Orestes, 43, estrangula e mata Gilson, seu pai biológico, que o havia conhecido naquele dia, naquela hora.
O contexto: Gilson, agente da repressão infiltrado em movimento de esquerda, conhece Socorro. Ela fica grávida, mas o casal se separa antes mesmo de saber da gestação de Orestes.
Em 1973, o esconderijo de Socorro e seu filho é denunciado por Gilson à polícia.
Escondido no sótão da casa, aos 6 anos, Orestes testemunha a tortura e a morte da mãe, por estrangulamento, nas mãos de seu pai, Gilson.
Gabo Morales/Folhapress
Júri simulado durante as gravações do longa 'Orestes'
Júri simulado durante as gravações do longa 'Orestes'
TRAGÉDIA
O caso remete à "Oresteia", de Ésquilo (leia ao lado), trilogia trágica grega em que Orestes mata a mãe, Clitemnestra, que havia assassinado seu pai, Agamêmnon.
É, no entanto, inspirado na história de Soledad Barrett, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), morta sob tortura, em 1973, no episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento, em Pernambuco.
Soledad namorou José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, que se tornou informante da repressão e delatou a amante. A militante estaria grávida de Anselmo quando foi morta.
"Fiquei impressionado com o caráter trágico desta história", lembra Siqueira. "Mas queria evitar reconstituições ou imagens de arquivo. Queria fazer um filme do presente, porque há consequências da ditadura em curso ainda hoje, por exemplo, no tipo de polícia que temos."
Para ele, as estratégias de repressão empregadas, com viés político, durante o regime militar, são hoje usadas pelas forças policiais em episódios como os protestos ocorridos em junho e "contra pretos e pobres, que tomam porrada e desaparecem".
"Ontem eram aqueles que lutavam contra o regime, hoje são milhares e milhares de Amarildos", diz, em referência ao caso do pedreiro morador da Rocinha, no Rio, que desapareceu em 14 de julho depois de ter sido levado por recrutas da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).
PSICODRAMAS E JÚRIS
Diante do crime ficcional criado pelo diretor e de seu contexto, foi inevitável tocar na questão da Lei de Anistia, cuja revisão foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, e das atuais comissões da Verdade.
Para trazer este debate para o presente, o diretor primeiro promoveu sessões de psicodrama entre ex-militantes de esquerda torturados, filhos de desaparecidos durante o regime militar -entre eles, Ñasaindy, filha de Soledad-, pais de jovens desaparecidos hoje, militantes de direitos humanos e policiais.
Os encontros foram filmados no prédio vazio do DOI-Codi de São Paulo e no teatro Taib, no Bom Retiro.
Depois, o caso foi apresentado a dois tribunais do júri simulados. A Folha teve acesso a um deles, do qual participaram o juiz José Henrique Rodrigues Torres, o promotor Maurício Antônio Ribeiro Lopes, e José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e advogado de defesa de mais de 600 presos políticos da época.
"A ideia não é colocar a Lei de Anistia no banco dos réus, mas transpor para a vida dos homens os dilemas políticos, históricos e éticos deste debate, a construção e a desconstrução das verdades", explica o cineasta.
Ao submeter um crime ficcional, com certo lastro no real, a situações que fogem ao controle do diretor, regidas por visões e versões sobre justiça no Brasil de hoje, "Orestes" se configura como filme de experiência, aberto e processual, que procura demolir as fronteiras entre ficção e documentário.
"Vivemos uma falsa reconciliação, cor-de-rosa. Acho que o filme vai fazer cócegas nessa mentira", avalia José Roberto Michelazzo, ex-preso político que participou dos psicodramas no mesmo edifício em que foi torturado.

SAIBA MAIS
'Oresteia' firmou temas centrais da tragédia grega
DE SÃO PAULO
"Oresteia" é uma trilogia de peças teatrais do grego Ésquilo (525 a.C.-456 a.C.), o "pai da tragédia": "Agamêmnon", "Coéforas" e "Euménides".
A obra estabeleceu temas centrais da tragédia grega: destino (o assassinato de Agamêmnon por sua mulher, Clitemnestra, e o amante, Egisto), vingança (a reação do filho Orestes, que mata a mãe e Egisto) e justiça (a perseguição de Orestes pelas Fúrias, divindades que vingam crimes de sangue com sangue, e seu julgamento pela corte de Atenas).
O júri empata. A deusa Atena vota a favor de Orestes, absolvendo-o.

ANÁLISE
Dilema entre mostrar e editar a realidade é típico do gênero
ANDRÉ BARCINSKICRÍTICO DA FOLHAO cinema documental sempre viveu esse dilema: o que é real e o que é ficção? Quando um cineasta edita uma cena, não está também impondo a "sua" verdade?
Um dos grandes documentaristas do cinema, o norte-americano Robert Flaherty (1884-1951), reencenava sequências inteiras.
Em "Nanook do Norte" (1922), Flaherty pediu aos esquimós que construíssem um iglu sem teto, para facilitar o trabalho da câmera (as condições técnicas dificultavam registros "reais", já que Flaherty usava uma câmera a manivela, uma Akeley, com capacidade reduzida de filme).
Em "O Homem de Aran" (1934), o cineasta pediu aos moradores das isoladas ilhas de Aran, na costa da Irlanda, que reencenassem técnicas de pesca que não usavam havia quase meio século.
Na década de 1920, vários filmes documentais tentaram --com graus diferentes de experimentalismo-- "captar" a vida de cidades, caso de "Berlim, Sinfonia da Metrópole" (1927), de Walter Ruttmann, "São Paulo, Sinfonia da Metrópole" (1929), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, e "O Homem da Câmera" (1929), do russo Dziga Vertov.
Os filmes traziam cenas do cotidiano, mas a montagem e efeitos visuais "organizavam" a realidade de acordo com o gosto e objetivo dos realizadores.
E o que dizer do grande "Cabra Marcado para Morrer" (1984), de Eduardo Coutinho? O filme começou a ser rodado em 1964, como uma obra ficcional inspirada no assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, na Paraíba. Várias pessoas faziam os papéis delas mesmas.
As filmagens foram interrompidas pelo golpe militar e retomadas por Coutinho quase 20 anos depois, mas na forma de um documentário sobre o destino de atores e equipe.
"Cabra" é, portanto, um documentário sobre um filme ficcional, sendo este inspirado em fatos e interpretado pelos personagens reais.
A mistura de fato e ficção em documentários ganhou um capítulo importante há poucos meses, com o lançamento --por enquanto, apenas no exterior-- do poderoso "The Act of Killing", do norte-americano Joshua Oppenheimer.
No filme, ex-participantes de esquadrões da morte indonésios reencenam, em forma de faroeste, musical e comédia, as atrocidades que cometeram após o golpe de 1965, que pôs no poder o ditador Suharto. A fantasia sádica dos carrascos assusta tanto quanto os crimes --reais-- que cometeram.

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