quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Primeiro Ato leva ao palco espetáculo inspirado na realidade do Hospital Colônia de Barbacena.‏

Dor e poesia 

Primeiro Ato leva ao palco espetáculo inspirado na realidade do Hospital Colônia de Barbacena. Montagem foi criada em processo colaborativo entre o grupo e o coreógrafo Wagner Moreira
 




Sérgio Rodrigo Reis


Estado de Minas: 15/08/2013 

A sensação inicial diante de Só um pouco a.normal, novo espetáculo do Grupo de Dança Primeiro Ato, é de aflição. À medida que os bailarinos tecem a narrativa em forma de gestos e movimentos inspirados na realidade de Barbacena, para onde foram levadas por décadas as pessoas que não se encaixavam nos padrões da sociedade, o sentimento ora fica mais forte, ora se torna poesia. Ao final, o incômodo permanece, passando a acompanhar por um bom tempo os que experimentam assistir à montagem. A estreia do novo espetáculo será dia 23, no espaço do grupo, no Jardim Canadá, em Nova Lima.

Só um pouco a.normal surgiu do diálogo do Primeiro Ato com o coreógrafo Wagner Moreira, dentro do projeto Tecendo encontros, iniciativa de intercâmbios artísticos nas mais variadas áreas do conhecimento. Nascido em Barbacena, há 10 anos ele vive e trabalha na Alemanha e, como dissertação de mestrado, se inspirou na realidade do Hospital Colônia de sua cidade. Por oito décadas, mais de 60 mil pessoas tidas como “indesejáveis” foram enviadas até lá, onde a maioria morreu em situações degradantes. Eram deprimidos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoólatras, mendigos, negros. Wagner buscou referências nas histórias narradas por familiares, vizinhos e amigos para compor a coreografia que leva o espectador a sentir mais aquele clima do que a ver algo explícito.

Nada é convencional em Só um pouco a.normal. A começar pela estrutura da cena: o público assiste sentado, em cadeiras em volta do linóleo, bem ao lado dos bailarinos Lucas Resende, Pablo Ramon, Vanessa Liga e Verbena Cartaxo. Como não saem do alcance dos olhos, é possível senti-los até ofegando e se transfigurando à medida que são vencidos pelo cansaço dos intensos movimentos. Também é possível sentir, diante do impacto da temática e das fortes cenas, como vão mudando as fisionomias e os corpos, quando a situação fica mais tensa e dramática. A ideia do coreógrafo foi partir das sensações não para discutir uma patologia, mas transformar a fragilidade humana em poesia. “Quem pode dizer o que é normal e o que é anormal?”, questiona.

A intenção do espetáculo é unificar plateia e elenco, em estado de fragilidade. Para tanto, utiliza elementos que se referem aos sofrimentos daqueles que viveram atrás das grades do Hospital Colônia. Na coreografia, a água do esgoto que muitos bebiam para matar a sede é lembrada numa das cenas mais fortes, quando os bailarinos mergulham as cabeças em baldes num instante aflitivo do espetáculo. Em outro momento, as referências ao sangue dos milhares que morreram em vão em Barbacena aparecem quando eles dançam entre pétalas de rosas vermelhas. Já os choques elétricos, que eram usados como tratamento para levar os internos a um estágio de letargia, surge em metáforas quando se ouvem tiros.

Suely Machado, diretora do Primeiro Ato, conta que o processo de construção da montagem resume bem a filosofia do grupo: trabalhar coletivamente. É assim desde 1982, quando fundou uma companhia de dança em Belo Horizonte para desenvolver trabalhos autorais. O processo atual parece, aos olhos de fora, mais intenso. Quatro bailarinos atuaram como criadores. “Apropriaram-se muito do trabalho”, analisa Suely. Os demais, que não estão em cena, estão nos bastidores. Seja realizando luz, som e vídeo, ou organizando os objetos de cena. O clima de colaboração é contagiante, assim como o resultado do projeto. “O que achei legal foi o fato de não ter retratado nem conceituado a loucura. Wagner criou uma poética da diversidade inspirado naquela realidade. Tornou a fragilidade humana a poética do movimento”, sugere a diretora do grupo.

A ideia do coreógrafo foi propor situações e metáforas que pudessem levar o espectador a ter referências sobre aquela realidade que o acompanha desde sempre. “O tema da loucura em Barbacena é presente. O que me assusta mais são os motivos que levavam as pessoas até lá, o fato de não caberem na sociedade.” Ao transformar a reflexão em arte, optou por colocar o espectador como espécie de lupa daquela realidade. “A plateia pode ver tudo muito próximo, pois tiro a ilusão do espetáculo. Tudo é baseado numa instabilidade, até para criar a sensação de linearidade. Não podia dar sentido àquilo que não tem”, justifica.

Só um pouco a.normal
Dia 23, às 21h; 24 às 20h; e 25, às 17h, no EACC (Rua Búfalo, 261, Jardim Canadá, Nova Lima). Ingressos: R$ 20 (inteira). O espetáculo abre a terceira edição do projeto Tecendo encontros. Haverá ainda oficinas e apresentações de coreografias do repertório. Informações: http://primeiroato.com.br/tecendo-encontros e (31) 3296-4848.


Diálogos possíveis

O projeto Tecendo encontros nasceu de um desejo de Suely Machado de promover encontros de dança por causa da dificuldade de circulação no Brasil. Prêmio da Petrobras Funarte Klauss Vianna de Dança, em 2012, possibilitou três edições. A primeira foi com a bailarina Maria Alice Poppe (RJ) e o músico Tato Taborda (PR). Realizaram uma oficina em conjunto com os bailarinos e o resultado foram improvisações no Bairro Jardim Canadá, inspiradas na sonoridade do entorno. Em seguida, a parceria voltou a ocorrer, desta vez com o casal de coreógrafos Denise Namura (SP) e o alemão Michael Bugdam. Ao fim do processo de troca surgiu o espetáculo Pó de nuvens.

O encontro atual com Wagner Moreira surgiu de uma conversa com Júlia Medeiros, produtora do Ponto de Partida, de Barbacena. Ela contou sobre o trabalho de Wagner na Alemanha e de como eram fortes naquela cidade do Campo das Vertentes tanto as rosas quanto a questão da loucura. A diretora imaginou as possibilidades do novo encontro e o convite foi feito. O resultado, depois de quatro meses de imersão, é o que o público vai conferir em Só um pouco a.normal. Para novas edições, o Primeiro Ato busca outras parcerias
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