quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

‘Trabalho para melhorar a NSA’

O Globo 25/12/2013

Snowden reaparece em entrevista e diz que seu objetivo ao vazar documentos já foi atingido


BARTON GELLMAN
Do “Washington Post”


-MOSCOU- A voz familiar ao telefone do hotel
não economizou palavras. Ele perguntou as
horas, checou a resposta com a precisão dos
ponteiros do próprio relógio, descreveu o local
do encontro e disse:
— Te vejo lá.
Entre turistas e locais, Edward Joseph Snowden
emergiu sozinho na hora marcada, esticou
a mão para um cumprimento e virou-se, indicando
um caminho. Em pouco tempo, guiou o
visitante a um espaço seguro, longe dos olhos
do público. Durante as mais de 14 horas de entrevista,
a primeira concedida ao vivo desde que
chegou a Moscou, em junho, Snowden não
abriu a cortina ou saiu. Apesar de a Rússia ter
lhe concedido asilo temporário até 1º de agosto,
ele continua um alvo de enorme interesse para
serviços de Inteligência cujos segredos ele desvendou
em escala épica.

Seis meses depois das primeiras revelações,
Snowden concordou em refletir sobre seu feito
e a repercussão de suas escolhas. Ele estava relaxado
e animado em dois dias de conversas
quase ininterruptas, movidas a hambúrgueres,
macarrão, sorvete e doces russos. Snowden permitiu
conhecer trechos de sua carreira na Inteligência
e da vida recente como um “gato trancado”
na Rússia. Mas sempre leva a conversa de
volta à vigilância, à democracia e ao significado
dos documentos que expôs.

— Para mim, em termos de satisfação pessoal,
a missão já está cumprida. Eu já venci. A partir
do momento em que os jornalistas puderam
trabalhar, tudo o que eu vinha tentando fazer foi
validado. Porque, lembre-se, eu não quis mudar
a sociedade. Eu quis dar à sociedade a chance
de decidir se ela deveria mudar. Tudo o que eu
quis foi que o público pudesse dizer como quer
ser governado. Passamos desse marco há muito
tempo. Agora, todos estamos pensando nos objetivos
complementares.


Snowden pensa de forma ordenada, com a
abordagem de um engenheiro para resolução
de problemas. E ele chegou à conclusão de
que uma perigosa máquina de vigilância em
massa agia livremente. Os mecanismos de fiscalização
do Congresso e do Tribunal de Vigilância
da Inteligência Estrangeira eram os “túmulos
do bom senso”, manipulados pela Agência
de Segurança Nacional (NSA), o órgão encarregado
de de mantê-los funcionais. Regras
de sigilo e classificação haviam criado muros
para impedir o debate público.
— Você reconhece que está agindo no escuro,
que não há nenhum modelo — afirmou Snowden,
admitindo não ter como saber se teria
apoio do público. — Mas quando você pesa que
a outra alternativa é não agir, percebe que algum
debate é melhor que nenhum debate. Porque
mesmo que a sua análise revele-se errada, o
mercado de ideias vai trabalhar isso. Se olhar de
uma perspectiva de engenharia, uma perspectiva
interativa, é claro que você tem que tentar alguma
coisa em vez de não fazer nada.


‘MEU COMPUTADOR ESTÁ VAZIO’

Em 22 de junho, o Departamento de Justiça
emitiu uma queixa criminal contra Snowden
por espionagem e roubo de propriedade do governo
— onde é visto como um sabotador imprudente.
Diz-se que ele quebrou um juramento
de sigilo, expressão que incute uma sensação
de traição. O diretor da NSA, Keith Alexander, e
o diretor de Inteligência Nacional, James Clapper,
entre outros, têm usado essa fórmula. Mas
Snowden diz que o Formulário Padrão 312, o
acordo para não revelar informações secretas, é,
na verdade, um contrato civil. Ele o assinou,
mas depositou sua lealdade em outro lugar:
— O juramento de obediência não é um juramento
de sigilo. Esse é um juramento à Constituição.
Esse é o juramento que eu cumpri, mas
que Keith Alexander e James Clapper, não.
As pessoas que o acusam de deslealdade, disse
ele, confundem seu propósito.


— Eu não estou tentando derrubar a NSA, estou
trabalhando para melhorar a NSA. Eu ainda
estou trabalhando para a NSA agora. Eles são os
únicos que não percebem isso — afirmou.

Snowden garante que a maioria dos funcionários
da NSA acreditam em sua missão e
confiam em como a agência lida com os segredos
coletados de cidadãos comuns. Mas a
aceitação dessas operações não era universal.
E ele começou a testar essa hipótese
mais de um ano atrás, em conversas com colegas
e superiores: em outubro de 2012, ele
levou suas angústias a dois supervisores do
Diretório de Tecnologia da NSA e a outros
dois do Centro Regional de Operações contra
Ameaças, no Havaí. A eles e a outros 15
colegas, ele contou ter aberto o programa
BOUNDLESSINFORMANT, que usava mapas
coloridos para mostrar o volume de dados
coletados pela NSA. Muitos ficaram desconcertados
e vários outros disseram que não
queriam saber mais.

— Eles ficaram chocados ao ver que estamos

coletando mais dados sobre americanos nos
EUA do que sobre russos na Rússia — contou.
Antes de começar a revelar os documentos,
ele fez avaliação final dos riscos. E superou o
que, à época, chamou de “medo egoísta” das
consequências para si próprio:
— Eu te disse que o único medo que restava
era a apatia; que as pessoas não ligassem, que
não quisessem mudanças.

Os documentos chamaram a atenção porque
mostraram aos americanos uma história que eles
não sabiam que tinham. A revelação do projeto
MUSCULAR — que permitia acesso às redes de
fibra ótica que conectam os servidores de empresas
como Google e Yahoo mundo afora — irritou
e galvanizou empresas americanas. Mas Snowden
concentrou-se num ponto desde o início: o
estabelecimento de alvos individuais curaria a
maior parte do que ele acha errado na NSA.


UMA VIDA DE MIOJO E BATATAS FRITAS

Para Snowden, privacidade é um direito universal
aplicável a todos, igualmente:
— Eu não me importo se você é o Papa ou
Osama bin Laden. Desde que haja uma causa
individual, articulável, provável para colocar essas
pessoas na mira da Inteligência estrangeira
legítima, tudo bem. Eu não acho que pedir um
argumento provável seja impor um fardo ridículo.
Porque, você tem que entender, quando se
tem acesso às ferramentas que a NSA tem, uma
causa provável cai das árvores.


Apesar de muitas alegações, nos EUA, de
que “todo mundo espiona”, quando se trata
da espionagem de aliados, a notícia principal
para Snowden nem sempre é o alvo — como
no caso da vigilância das comunicações da
chanceler federal alemã, Angela Merkel.

— O que é revelada é a enganação do governo.
O governo americano disse: “Nós seguimos a lei
alemã na Alemanha. Nunca atingimos alvos
alemães”. E aí a história vem à tona dessa forma:
“Do que você está falando? Você está espionando
a chanceler federal. Vocês mentiram para o
país inteiro, diante do Congresso” — pontuou o
ex-técnico da CIA e da NSA.

Uma das grandes preocupações dos EUA é saber
se China e Rússia conseguiram acesso aos
arquivos do computador de Snowden — o pior
dos cenários, mas uma hipótese que três altos
funcionários da Inteligência creem não ser possível.
Numa missão anterior, Snowden havia ensinado
a fontes da Inteligência como operar em
segurança em “um ambiente digital de alto risco”,
num cenário onde a maior ameaça era a
China. Ele recusou revelar onde estão os arquivos,
mas se disse seguro de que não os expôs à
Inteligência chinesa quando esteve em Hong
Kong. E tampouco levou-os a Moscou.

— Não há nada aqui — disse ele, virando a tela
do laptop para o repórter. — Meu disco rígido
está completamente em branco.


A outra grande questão é o número de documentos
que Snowden copiou — calculado pelo
novo diretor da NSA, Rick Ledgett, em até 1,7
milhão. Há quem diga que ele deixou um mecanismo
de divulgação de todo o conteúdo caso
seja capturado. Ele não falou sobre isso. Mas,
horas depois, mandou uma mensagem criptografada:
“Isso soa como uma ideia suicida. Não
faria nenhum sentido”.

Tanto pelo temperamento como pelas circunstâncias,
Snowden é um homem reticente,
relutante em discutir detalhes de sua vida pessoal.
Durante esses dois dias, nunca baixou a
guarda, mas deixou uns poucos fragmentos
emergirem. Ele disse ser ascético. Vive comendo
miojo e batatas fritas. Recebe visitantes, e
muitos deles lhe levam livros. As edições se
acumulam numa pilha não lida. A internet é
uma biblioteca infinita e uma janela para o
progresso de sua causa.

— Sempre foi muito difícil me fazer sair de
casa. Eu simplesmente não tenho muitas necessidades...
Ocasionalmente há coisas para
fazer, coisas para ver, pessoas para encontrar,
tarefas para cumprir. Mas realmente
tem que ser algo com um objetivo, você sabe.
Caso contrário, contanto que eu possa sentar,
pensar, escrever e falar com alguém, isso
para mim é mais importante que ir para fora
olhar paisagens — revelou.

Na esperança de manter o foco na NSA, ele
tem ignorado os ataques pessoais.
— Deixe que digam o que quiserem. Isso não
é sobre mim — insistiu Snowden.

Ex-diretores da CIA e da NSA como Michael
Hayden preveem que Snowden vá se acabar
em Moscou, alcoólatra, como outros desertores.
Snowden dá de ombros: ele não bebe. E
nunca bebeu.

Mas ele sabe que sua simples presença é
munição fácil para os críticos. Ele não escolheu
o refúgio em Moscou como destino final.
Segundo ele, não houve outra escolha
desde que o governo americano cassou seu
passaporte quando ele tentava mudar de avião
rumo à América Latina. Seria estranho se
as autoridades russas não mantivessem um
olho nele, mas ninguém foi visto nos arredores
durante a entrevista. Snowden tampouco
tentou se comunicar furtivamente ou pediu
para que seu visitante o fizesse. Ele tem acesso
contínuo à internet e conversa diariamente
com jornalistas e seus advogados, desde o
primeiro dia na área de trânsito do aeroporto
moscovita Sheremetyevo.


— Não há nenhuma prova de que eu tenha lealdades
a Rússia, China ou a qualquer outro país
que não os EUA, como alegam. Eu não tenho
nenhum acordo com o governo russo. Não entrei
em nenhum tipo de entendimento com
eles. Se eu desertei, eu desertei do governo para
o povo — afirmou.









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