quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Marina Colasanti-Uma maneira de viver‏

Uma maneira de viver 
 
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 30/01/2014





Ela era veterinária em Milão quando o conheceu. Não sei o que ele fazia nessa época, sei que em algum momento se encontraram, se quiseram bem e decidiram viver juntos. Não em Milão, mas nas altas montanhas da Lombardia, onde ele havia nascido. Iam levados não só pelo amor, como por outro projeto conjunto: criar cabras cachemire.

A gente entra numa loja, escolhe uma suéter mais macia que as outras, mais leve e mais cara, é cachemire. Não se detém na árvore genealógica da suéter. Paga e leva com satisfação, a mesma que teria com qualquer mercadoria industrial, não mais do que isso. O cachemire, porém, merece outra atenção. Pelo menos aquele produzido pelo casal das montanhas.

Começaram com cinco cabras, quatro fêmeas e um macho. Hoje, passados alguns anos, já são 15. As cabras se vestem, durante todo o verão, com pelo longo e liso, preto ou claro. Que só serve para elas. O que serve para nós é aquele finíssimo, que no outono se adensa por baixo do outro, uma espécie de subpelo, destinado a aquecer os bichos quando a neve vier.

É com a chegada da primavera que essa lã preciosa – agora desnecessária para os animais – começa a ser recolhida com uma escova metálica, parecida com as que usamos para pentear nossos cães. As cabras têm que ser escovadas durante quatro a cinco horas por dia, todos os dias. Durante meses. O que fica entre os dentes da escova é cuidadosamente recolhido.

Ao fim da temporada, toda essa lã é enviada para ser penteada e fiada. Eu disse “toda”, mais em relação ao esforço que à quantidade. Pois após tanta escovação, o que se obtém com 15 cabras são somente dois cones, daqueles de fiação industrial, cheios. Um de lã escura, outro clara. Só dois.

Não tenho especial interesse em cabras. O que me atraiu nesse casal, encontrado por acaso em um canal italiano de televisão, foi a sua maneira de viver e o prazer que extraem dela.

Dois cones de lã fiada não bastam para viver, nem nas altas montanhas. E é preciso pagar os dois serviços, executados por terceiros. A moça, veterinária, então, além de pentear cabras, trabalha como garçonete. E o marido tem um trabalho similar, acho que é frentista. Sem ressentimento. Seu negócio, afirmam com ternura, progride e, se tudo continuar como previsto, dentro de quatro ou cinco anos terão alcançado um rebanho de 50 cabras, que é o quanto pretendiam desde o começo.

Cinquenta cabras a serem escovadas diariamente podem representar a felicidade, ou que nome se dê a esse sentimento de acerto com a vida, o trabalho não como condenação, mas como parte de um projeto muito mais amplo e plural. Se a natureza faz o seu trabalho produzindo as cabras, se as cabras fazem o seu trabalho produzindo a lã, por que seria mais importante ou mais exaustivo o trabalho humano que leva à produção do fio?

A esposa de um meu amigo era tecelã. Em viagem de trabalho com ele ao Equador, sugeri que comprasse meadas de lã de vicunha para lhe levar de presente. Eram meadas artesanais, macias, ainda sem tingir, preciosas como cachemire. Ele estranhou o preço altíssimo. Ela, até hoje, me é grata pelo conselho.

Essas cabras e essas vicunhas não vivem estabuladas, não são alimentadas com ração, não tomam produtos químicos para aumentar sua lã. Que embora cara, vale mais do que custa.

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