sábado, 10 de maio de 2014

Anfiteatro nas montanhas - Sérgio Rodrigo Reis

Anfiteatro nas montanhas
 
Com o Museu de Congonhas em projeto de implantação na cidade colonial mineira, o conjunto do Santuário do Bom Jesus do Matosinhos ganha nova dimensão cultural que será modelo para o país



Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 10/05/2014

Adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos com o conjunto de profetas esculpidos por Aleijadinho em pedra-sabão: museu a céu aberto (Fotos: Welerson Athaydes/Divulgação)
Adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos com o conjunto de profetas esculpidos por Aleijadinho em pedra-sabão: museu a céu aberto


O botânico e naturalista francês Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) chegou ao Brasil em 1816 para acompanhar a missão que tinha como objetivo resolver o conflito entre Portugal e França pela posse da Guiana, mas foi por outros motivos que ele se tornou célebre por aqui. Observador, logo se encantou pelas formas, cores e pujança da natureza do entorno e ainda pelos hábitos culturais locais, resolvendo, pela sua ótica, registrar as lembranças em livros de referência sobre a realidade brasileira do século 19. Esta foi a origem do relato contido no livro Viagem pelo distrito dos diamantes e pelo litoral do Brasil (Coleção Brasiliana), sobre o conjunto barroco de Congonhas, criado por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814).

Saint-Hilaire, ao contrário da maioria que chega ao alto da colina daquela cidade, se deparando com as obras de arte do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, não gostou do que viu. No templo, uma obra votiva dedicada ao Bom Jesus de Matosinhos de Portugal, erguida como pagamento de uma promessa feita pelo português Feliciano Mendes, depois de ter sido curado de grave enfermidade, está a igreja com interior rococó, de inspiração italiana, diante da qual, nas escadarias em frente, foram instaladas estátuas em pedra-sabão de 12 profetas. Um pouco mais adiante construíram-se as capelas ilustrando as estações da Paixão de Cristo, onde há um conjunto de esculturas em tamanho natural, policromáticas, feitas de cedro e de forte expressividade dramática.

“Essas imagens são muito malfeitas, mas, como são obras de um homem da região, que nunca viajou e nunca teve um modelo com o que se guiar, elas devem ser julgadas com certa indulgência”, disse o naturalista, ao passar por lá em 1818. Suas críticas continuaram em relação aos profetas: “Essas estátuas não são obras-primas, sem dúvida; mas observa-se no modo pelo qual foram esculpidas qualquer cousa de grandioso, o que comprova no artista um talento natural muito pronunciado”.

Assim como o viajante francês, ao longo da história, o santuário de Congonhas, que na realidade é um dos principais museus brasileiros ao ar livre dedicado à arte e à devoção, vem sendo cercado de incompreensões, polêmicas e opiniões divergentes. A oportunidade que se aproxima com a inauguração, nos próximos meses, do Museu de Congonhas, deverá contribuir, e muito, para a compreensão da dimensão correta que o santuário, considerado Patrimônio Mundial pela Unesco, tem para a cultura brasileira. A nova instituição, que surge numa soma de esforços entre o poder público local e instituições como a própria Unesco e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), deve ser um divisor desta realidade.

O Museu de Congonhas traz para a reflexão atual o conceito de “museu de sítio”. A proposta é que as ações desenvolvidas pela nova instituição sejam voltadas para potencializar o acervo que está em seu entorno, do lado de fora. Hoje, quem visita o conjunto barroco tombado em Congonhas não encontra informação qualificada para compreender as camadas de conhecimento que estão por trás da simples admiração da impactante obra de Aleijadinho. Na cidade, escondidos por séculos de história, estão relatos de fé, devoção e milagres, em perfeita sintonia com a obra de arte erguida no lugar. O museu oferecerá este conteúdo qualificado e acessível ao visitante e à comunidade, potencializando em vários aspectos a visita ao sítio histórico.

Antes mesmo de o Museu de Congonhas abrir as portas, um amplo processo de educação patrimonial está em implantação em Congonhas, começando a requalificar a realidade tão desgastada no tempo. Dentro do contexto das celebrações do bicentenário do Aleijadinho, que começaram em 18 de novembro de 2013 e se prolongam até a mesma data do presente ano, a comunidade tem sido, a cada mês, envolvida por um processo de difusão do conhecimento do seu patrimônio. O ponto inicial foi a abertura da basílica, onde estão os 12 profetas, para programação cultural da série de concertos de música barroca do Coral Cidade dos Profetas. Em seguida, vieram a abertura noturna dos Passos da Paixão, com nova iluminação cênica, seguida pela encenação da semana santa em diálogo com a representação criada por Aleijadinho das mesmas cenas. Chegou o momento da Semana Nacional dos Museus.

Congonhas foi escolhida para abrir amanhã a Semana Nacional de Museus, evento promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em todas as instituições museológicas do país. Ampla programação foi planejada para oferecer e envolver a comunidade nos conceitos que, daqui a poucos meses, estarão difundidos pelo Museu de Congonhas. Pela primeira vez, a futura instituição ganhará as ruas da cidade histórica em palestras, concursos educativos, lançamentos de livros e exposições, adiantando suas possibilidades de conexão futura. Ao longo de toda a semana, o conteúdo estará disponível. A começar por amanhã, quando será realizada visita às obras da nova instituição, seguida por palestra do presidente do Ibram, Angelo Oswaldo, e pela projeção, nas capelas, de vídeos do conteúdo curatorial do futuro Museu de Congonhas.

Imagens em madeira com as passagens da Paixão de Cristo: a força dramática de uma arte que dialoga com a espiritualidade do povo
Imagens em madeira com as passagens da Paixão de Cristo: a força dramática de uma arte que dialoga com a espiritualidade do povo


Patrimônio


O processo de educação patrimonial se expande nos meses seguintes com outras ações, que culminarão com a abertura do museu. Em parceria com a Unesco e o Iphan, está sendo consolidado um projeto de sinalização interpretativa que será pioneiro entre os 12 sítios brasileiros que ostentam o título de Patrimônio Mundial. As placas instaladas em breve ao longo do percurso histórico deverão, do ponto de vista do pedestre, oferecer informação qualificada para a compreensão da dimensão histórica e artística do conjunto, sem necessidade de intermediação. O modelo que está sendo instituído em Congonhas servirá a todos os demais sítios nacionais, que, nos próximos anos, passarão por igual intervenção. A proposta é que o turista, ao visitar um deles, se sinta motivado a ir ao outro, numa conexão cultural pelo Brasil.

A iniciativa de requalificação interpretativa do patrimônio histórico de Congonhas tem uma dimensão mais ampla. Ao contrário das últimas décadas, nas quais a maioria dos esforços para divulgar a imagem do Brasil no exterior se resumia a conceitos como “o país do sol, do carnaval e do futebol”, agora os esforços da Embratur se voltam para a promoção internacional dos 12 sítios brasileiros considerados patrimônios mundiais. Este ano, num período que se prolonga até as próximas Olimpíadas, serão realizados eventos na Europa, Estados Unidos e na Argentina, que terão a missão de revelar, ao olhar do estrangeiro, este outro lado da realidade cultural do país. Congonhas participará desta ação com exposições do patrimônio histórico, além de levar dois ofícios do seu patrimônio imaterial: o das quitandeiras e o da música colonial.

Os esforços se somam para oferecer brevemente ao turista e à comunidade experiências bem diferentes da que Saint-Hilaire viveu à sua época ou que visitantes anônimos têm relatado em várias observações. Se tudo correr como se vislumbra, a imagem um tanto desgastada da atualidade será substituída pela imortalizada em observações de outras personalidades da cultura nacional, que, diante da impactante imagem do conjunto artístico de Congonhas, tiveram sua ótica modificada. Os relatos são inúmeros, mas alguns deles sobreviveram à passagem do tempo. O escritor Manuel Bandeira, num célebre arroubo de encantamento diante da obra de Aleijadinho, disse que ele foi, “inegavelmente, o maior arquiteto e estatutário que já tivemos… Se houvesse vivido na Europa, teria dado motivo a toda uma biblioteca”.

O poeta modernista Oswald de Andrade é outro que sintetizou, em versos célebres, a dimensão simbólica que ora se pretende resgatar do santuário de Congonhas:

“No anfiteatro das montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem.
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu.
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas.”

. Sérgio Rodrigo Reis é jornalista e presidente da Fundação Municipal de Cultura de Congonhas.

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