sábado, 3 de maio de 2014

E o mundo nunca mais foi o mesmo‏

E o mundo nunca mais foi o mesmo 
 
Trinity narra a história do Projeto Manhattan, que deu origem à bomba atômica. Autor mescla informações políticas e científicas, em narrativa didática que mantém o suspense 

 
Valf
Estado de Minas: 03/05/2014
 (Três Estrelas/Reprodução)


Cruzando uma paisagem desértica, um carro segue até uma área cercada e para em uma guarita de identificação. Dentro do automóvel, um homem começa uma conversa com o motorista. Pergunta a este se por acaso conhecia o mito grego de Prometeu. Com a negativa do soldado que dirigia o carro, o passageiro começa a contar a estória de como Prometeu havia roubado o fogo e presenteado a humanidade com ele. Conta também sobre o flagelo sofrido pelo semideus, imposto como castigo, pelo colérico Zeus. Uma conversa trivial sobre mitologia que serve como perfeita alegoria dos dilemas moral e ético envolvidos na construção de uma arma de destruição em massa. A criação da bomba atômica – o moderno fogo de Prometeu – deixava inquietantes perguntas no ar: estaria a humanidade preparada para tamanho poder? E qual seria o preço a ser pago?

Trinity: A história em quadrinhos da primeira bomba atômica, lançamento da Editora Três Estrelas, utiliza de forma muito competente as possibilidades narrativas dos quadrinhos para explorar um rico e massivo trabalho de pesquisa e traz ao leitor obra que mescla história, física, política e debates filosóficos em suas mais de 150 páginas. Escrita e ilustrada pelo norte-americano Jonathan Fetter-Vorm, Trinity é o codinome do primeiro teste nuclear realizado no mundo, em 16 de julho de 1945, como parte do ultrassecreto Projeto Manhattan. É o ponto de partida que mostra a criação das bombas jogadas sobre o Japão em 1945 e ponto focal do livro.

Fetter-Vorm, porém, não se atém apenas à construção da narrativa deste fato. O autor volta no tempo e, de maneira por vezes didática, remonta a história da energia nuclear. Começa em 1898, em Paris, com a descoberta da radioatividade pelo casal Marie e Pierre Curie, e vai, por meio de saltos temporais, avançando pelos primórdios da era atômica. Habilmente, o autor alinhava explicações sobre física para que quem não se lembra ou mesmo não conhece entenda os processos envolvidos nas reações químicas e físicas. Fetter-Vorm começa mostrando o funcionamento de um simples átomo e segue adiante com a explicação de termos que fazem parte do vocabulário tantas e tantas vezes repetido, porém pouco conhecido: fissão, reação em cadeia e enriquecimento de urânio. Para isso, utiliza diagramas e esquemas detalhados, optando por fazer analogias para demonstrar conceitos abstratos ou mensurar algo que para o leigo é de difícil compreensão.

O Projeto Manhattan surgiu como reação à então recente descoberta da fissão nuclear. Temendo a utilização para fins bélicos pelos nazistas, o governo norte-americano se adiantou e deu início a um de seus maiores e mais ambiciosos programas – a construção da bomba nuclear. Capitaneado pelo cientista J. Robert Oppenheimer, o projeto contava com as maiores e mais brilhantes mentes de sua época. Como o sigilo era imprescindível, o “pai da bomba atômica”, como ficou conhecido Oppenheimerm, tinha uma tarefa no mínimo complicada. Não informando seu real propósito, deveria convencer cientistas a largarem tudo (vida pessoal e trabalho) e seguirem com suas famílias para uma base no interior do Novo México.

Sem poder detalhar as explicações, tinha um trunfo na manga para poder convencê-los: o projeto acabaria com a guerra. Além dos cientistas, milhares de trabalhadores de diversas áreas foram mobilizados e transferidos para outras regiões dos EUA (80 mil trabalhadores viviam e trabalhavam em Oak Ridge). Cada um com uma função específica e sem conhecimento do que seu vizinho fazia. Tudo era mantido sob a mais rígida vigilância para que ninguém, com exceção de um restrito grupo, tivesse ideia do que estava sendo construído.

E foi assim que em julho de 1945, depois de cerca de três anos de pesquisas e desenvolvimento, a primeira bomba atômica foi detonada em Los Alamos. E esta cena é particularmente bem realizada na HQ. Fetter-Vorm traz em quase duas dezenas de páginas uma sequência em contagem regressiva, que começa oito horas antes da detonação da bomba, e nela alterna o relato histórico, com trechos de um texto sagrado hindu, assim como já havia feito com o mito de Prometeu, questiona a relação entre sagrado, profano e punição. Estaria o homem preparado para o que viria a seguir? Os segundos finais da contagem regressiva mostram uma série de planos-detalhes do rosto de Oppenheimer, até a chegada do zero. A sequência seguinte não é a explosão em si, mas a utilização do recurso gráfico do detalhamento do processo para demonstrar a detonação e o que ocorre neste átimo de segundo. Dessa forma, o que a princípio pode ser visto como esquemático em sua forma, na verdade se torna uma sequência de beleza poética. Três semanas depois do teste de Los Alamos, era lançada a primeira bomba atômica sobre a cidade japonesa de Hiroshima.

Jonathan Fetter-Vorm faz com Trinity sua estreia no mundo dos quadrinhos. Um belo começo. Em alguns momentos, a leitura da sequência de seus textos e balões fica um pouco confusa, mas nada que possa diminuir o excelente trabalho. Em suas notas finais, o autor detalha a base de suas pesquisas e as dezenas de livros que serviram como suporte para a obra que irá agradar os amantes de HQ e aqueles que queiram conhecer um pouco mais sobre um dos episódios mais marcantes do século 20.

TRINITY – A HISTÓRIA EM QUADRINHOS DA PRIMEIRA BOMBA ATÔMICA

. De Jonathan Fetter-Vorm
. Editora Três Estrelas, 160 páginas, R$ 29,90

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