sábado, 31 de maio de 2014

Inez Lemos - Seleção de ressentidos‏

Os atuais episódios de violência e a corrupção no Brasil têm raízes históricas e psíquicas que devem ser analisadas. A Copa do Mundo precisa apontar para a recuperação da cidadania e do pacto de civilidade


Inez Lemos

Estado de Minas: 31/05/2014


Grafite de Paulo Ito, num muro de São Paulo, imagem que ganhou as redes sociais e traduz o sentimento de parte dos brasileiros frente ao torneio (Nelson Almeida/AFP)



Como explicar a gênese da violência que assola o país? Depredação de ônibus, bancos, linchamentos aos supostos bandidos, execuções a pedradas, vasos sanitários e pauladas. Crueldade, vingança, ira e ressentimento. O caldo da maldade é engrossado dia a dia. Ao analisar os sinais de descontentamento e vandalismo, esbarramos em questões políticas e psíquicas. O inconsciente, ao ser contaminado pela realidade social, sofre os efeitos da vida política.

O descobrimento do Brasil fez parte de um projeto de modernidade, em sua corrida pela acumulação de riquezas. Somos filhos da pirataria, da contravenção e da corrupção. Filhos de uma relação de interesses – o português que engravidou a índia como forma de obter informação de quem aqui vivia. Estratégias de dominação. A arte de manipular para melhor reinar. Alienar, impedir que o outro participe, interaja. Quanto mais alienado, mais fácil de controlar. Contudo, o brasileiro, cansado de desrespeito e descaso, resolve se rebelar contra o poder público e privado. Não sobrou ninguém. A espada está no pescoço de todos nós.

O que move o mundo é o desejo insatisfeito. O capitalismo manipula, os políticos fingem que não escutam, mas a verdade é que não se controla um país oferecendo apenas pão e circo, celulares, tablets, lipoaspiração. O trabalhador, além de cartão de crédito, exige transporte, saúde e educação de qualidade. Anseia por dignidade, direitos, justiça. A desigualdade provoca revolta e ressentimento. O sonho agora é por igualdade de oportunidades. Punição aos ladrões de baixo e de cima. Quando o crime é uma prática da classe política, rebelar é a palavra de ordem entre os que sofrem as consequências.

O Brasil é terra de ninguém, onde as leis dificilmente são cumpridas, onde viceja o racismo, a homofobia e a intolerância. A onda fascista é um efeito da anomia, da farra e desfaçatez dos poderosos. Como circular ideias de ética, honestidade e honradez, se grande parte dos governadores, prefeitos e deputados direciona o olhar para suas contas bancárias? Educar e governar são tarefas intermináveis. Aprendemos a amar, respeitar e governar com os pais. Pai é aquele que, ao exercer a função paterna, simboliza a lei: interdita o desejo descabido. Cobrar doçura de um povo injustiçado é despautério. Sem o bom exemplo, os filhos continuarão no vandalismo. Seria o Brasil um convite ao banditismo?

Por que somos tão condescendentes com os políticos corruptos? Se a corrupção sempre foi um direito dos que dela se beneficiam, privilégios e injustiças sempre fizeram parte dos que detêm o poder econômico e político. Educar é barrar os filhos em seus impulsos destrutivos, inserindo-os nos limites da lei. Sem interditar, frustrar, a chance da criança tornar-se perversa é grande. A política é o palco privilegiado dos perversos, é onde eles são amparados em seus atos ilícitos e soltam as garras da ambição.

O passado coronelista e patrimonialista nos ensinou a utilizar o espaço público como se fosse privado. Ao mesmo tempo que o criticamos, repetimos posturas que condenamos. Como ultrapassar o atavismo moral que parece nos definir? Mudar uma cultura, fundar outra ideia de nação, quão difícil! É trabalho profundo, há de se tocar entranhas e rever o lixo recalcado. Todo sintoma aponta para uma tentativa de cura. Ao mesmo tempo que denuncia o que não vai bem, revela um gozo – prazer e desprazer na compulsão à repetição. Reclamamos dos corruptos, mas somos tolerantes quando eles defendem nossos privilégios.

Ao analisar a violência, penso na palavra ressentimento. Res-sentir – sentir duas vezes, não perdoar, guardar mágoas, alimentar vingança, não se implicar nos conflitos. Ressentimento é sentimento que fixa o sujeito na neurose. A neurose paralisa o sujeito no sintoma, impedindo-o de avançar nos bons sentimentos. O ressentido é um infeliz, pois se cristaliza na amargura. O brasileiro, que sempre gozou da condição de ressentido e trapaceado, agora quer, nas ruas, exigir políticas públicas de qualidade. Melhor que reclamar em mesa de bar ou descontar no erário, engrossando o caldo dos corruptos.

Desejo de desforra

A exposição de um cotidiano promíscuo provoca no brasileiro o desejo de desforra, de botar para quebrar. Se para o político a demanda da população é o que menos conta, se poucos se ocupam com suas necessidades, é de se esperar que o muro se rompa. No filme Getúlio, quando não havia mais o que esconder, o presidente Vargas confessa: “Nunca me pediram nada para o país (ou para povo), sempre me pediram algo para alguém”. A violência das ruas metaforiza o filho lesado contra o pai perverso. Passa-se ao ato de forma impulsiva, impensável. É sangue fervendo na veia.

Nossa história ressalta a ausência de interdição capaz de regulamentar o apetite pelo gozo e organizar um quadro social que outorgue a cidadania. O romance familiar brasileiro, nossa mitologia, produziu a fantasia do privilégio e da violação de direitos. Revisitando as determinações histórico-sociais dos processos de subjetivação, identificamos o descaso pela res-pública (coisa pública). O ethos que nos funda é o do prazer e não o da felicidade. A imagem que vendemos é do paraíso sexual. Mulheres gostosas e de fácil acesso.

País idílico, frívolo, que não soube se fazer respeitar. A Copa promete jogos e orgia. Goleada no campo e na cama. A volúpia e o fascínio que exercermos no imaginário dos estrangeiros condena nossa filiação. Submetidos ao imperativo do gozo, deixamos de cobrar o ouro que o mundo nos deve. Filhos de um amor pérfido. Sedução e traição.

A filha pobre e de pouca escolaridade, diante do dinheiro, se corrompe e se prostitui. Promiscuidade que lhe atravessa a alma e a lança na sarjeta das perdidas. Menina de um futuro morto. O que não nos faltam são motivos para subverter a ordem, romper com a imagem do negativo social. Chega de manipulação. Mídias e governantes nos alienam e dominam. Submissos aos interesses do mercado, nos fixamos no gozo.

A herança escravocrata explica a sujeição ao grande outro e a vocação à dependência. Consumista, imediatista e permissivo. Reserva libidinal do mundo. Aos olhos dos estrangeiros, a imagem será de eterno prostíbulo? Como explicar a tendência da mulher brasileira à nudez? Nossa condescendência com os sedutores revela o fracasso da função paterna. Adoramos nos exibir. Do carnaval ao Facebook, não perdoamos os flashes. Repetiremos na Copa o destino colonial? Permitiremos que o estrangeiro entre e explore o melhor, seja açaí ou adolescentes?

Sem Marx e Freud, sem pudor e ética, vencerá a violência. O niilismo quer acabar com a consciência social – utopia por maior distribuição de renda e oportunidades. O fantasma fundamentalista, aliado ao obscurantismo que se esconde nas religiões de esquina, prega a ignorância e a insanidade. Viver é enfrentar contradições. Saber lidar com os paradoxos humanos.

A anomia revela a desorganização social, a ausência de leis. Para que o tecido social se articule, é necessário mais que renúncia pulsional. Não se constrói uma nação apenas com repressão. O respeito aos pais se deve ao amor – o temor apenas é insuficiente para que a criança internalize a lei. Para que o brasileiro se anime e torça pelo Brasil, é preciso haver paixão. É preciso motivo para que o filho torça pelo pai. Contudo, a questão da violência no Brasil, antes de ser política, é psíquica.

Se a Copa servir para deflagrar a consciência de cidadania, que indica que a responsabilidade na construção de um país é de todos, valeram os investimentos. Se servir para estancar o masoquismo e investigar a condição de vítima, melhor ainda. Toda neurose, todo lugar de gozo, responde por uma filiação. A violência tanto pode ser efeito de uma metáfora paterna inconsistente, como do desamor do pai pelo filho. Como respeitar a casa se nela somos violentados, desprezados? Por tudo isso é difícil para o brasileiro sair às ruas com bandeiras e apitos. No lugar da torcida, prepara-se a revolta. Como sustentar um outro lugar, uma outra filiação?

O significante que operou como referência simbólica foi o da permissividade – riqueza e sexo em terras tropicais: praias, borracha e minério. Quando a filiação fracassa, a maledicência ganha espaço e se instaura como arremedo da função paterna. Colonização e exploração, corrupção e impunidade, permissividade e leviandade. A história e os significantes nos condenam. A onda de ações predatórias revela a condição de rebotalho, ela está no inconsciente do sujeito e não em sua condição econômica. Traço de filho rejeitado, com mãe omissa e pai ambicioso. Filho do português com a índia, do coronel com a escrava. Como reparar as perdas? Não estariam os black blocs denunciando o fracasso da função paterna?

. Inez Lemos é psicanalista.
E-mail: inezlemoss@gmail.com

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