segunda-feira, 2 de junho de 2014

As regras e a emoção do futebol - Antônio José Cabral

Engenheiro e empresário
Estado de Minas: 02/06/2014 


O futebol é apenas um jogo. O advérbio aí não tem a intenção de diminuí-lo, pretende somente registrar o seu caráter. Aliás, a ideia de que o futebol é apenas um jogo está fortemente introjetada nas nossas mentes, tanto que aceitamos que ele seja regido apenas pelas suas 17 regras, que o árbitro tenha a última palavra, que o seu poder seja absoluto e as suas decisões inquestionáveis, mesmo quando discricionárias. Ninguém, via de regra, exceto se for néscio ou louco, recorrerá à Justiça comum para, em outra jurisdição, tentar alterar o resultado de uma partida, mesmo que os erros de arbitragem possam ser provados por filmagens e vídeos.

Sendo o futebol apenas um jogo, suas regras não estão sujeitas às nossas constituições nacionais, nem aos nossos códigos jurídicos, sob pena de parecerem ridículas as interpretações contrárias. Os jogos têm suas próprias regras e as suas lúdicas diretrizes. Tomando emprestada a expressão com que Guimarães Rosa se referia ao amor, os jogos são “o descanso da loucura”.

Da mesma forma, para que sejam realizados os campeonatos, é preciso que haja os regulamentos. Não há campeonatos sem regulamentos. E, sendo eles meras extensões do jogo, têm o mesmo caráter, são coisas da mesma natureza. Os regulamentos são uma espécie de pacto, pelo qual se obrigam os participantes a obedecer regras de conduta e normas de comportamento. E, é claro, também neles estão previstas as punições pelo desrespeito a elas.

Há quem defenda a ideia de que, nos campeonatos, “devam prevalecer os resultados do campo”. Supõe-se que quem assim pensa, acha que a infração aos regulamentos não tem importância, desde que se ganhe no campo. Ou seja, que os regulamentos possam ser ignorados pelos vencedores. É uma opinião irrefletida, digamos assim. Como é próprio dos jogos, as decisões e punições pelo desrespeito às regras e aos regulamentos têm julgamento de caráter sumário e definitivo.

No futebol brasileiro isso cabe ao árbitro no campo e, fora dele, ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que aqui faz o papel das comissões disciplinares da Europa. É preciso admitir que o STJD é, de fato, um exagero da nossa Constituição Federal (art. 217), e nem é o único. Portanto, as punições à Portuguesa e ao Flamengo no fim do Campeonato Brasileiro de 2013 não deveriam ter causado nenhum estranhamento. Apenas foram aplicadas as que estavam previstas no regulamento. Já o espanto foi justificado, pelo fato inusitado de as infrações terem ocorrido na última rodada, quando as posições relativas já pareciam definidas e, é claro, também pelas surpreendentes consequências.

Todas essas considerações nos remetem às regras do jogo, que vêm sendo bastante questionadas por parte da nossa imprensa esportiva, que deseja, entre outras coisas, que seja permitido aos árbitros o acesso às gravações dos lances da partida, o que elevaria o grau de certeza das decisões. É preciso ter em conta que a incorporação dessas alterações, que seriam profundas e importantes, muito provavelmente teria como resultado um outro jogo, muito diferente do atual e também muito provavelmente menos empolgante, já que a busca da exatidão e da certeza poderiam torná-lo um tanto insosso.

 Ora, o futebol é hoje o esporte mais popular do mundo, o interesse por ele cresce exponencialmente, a ponto de termos para a final dos campeonatos mundiais de seleções um público telespectador esperado de mais de 2 bilhões de pessoas, 1/3 da população mundial. Não há, tanto quanto se possa vislumbrar o futuro próximo, o menor sinal de desgaste ou desinteresse pelo jogo com as regras atuais, a ponto de recomendar qualquer mudança. Por isso os ouvidos em Zurique estão moucos. E moucos provavelmente continuarão.

Na verdade, os jogos de uma maneira geral, pela sua natureza, talvez possam prescindir de modernização e dos avanços tecnológicos. Tomemos o xadrez como exemplo: sua longevidade sem alteração das regras é notável. Elas hoje ainda são as mesmas de sempre, não obstante os reis agora serem poucos, as torres terem perdido há muito tempo o seu significado estratégico e os bispos terem se recolhido apenas às suas funções eclesiásticas.

Seu caráter ancestral pode ser comprovado pela alusão que a ele é feita pelo imenso Omar Khayyam no seu Rubaiyat. Eis os versos: “Tu, cuja face humilha a rosa silvestre; tu, cujo rosto assemelha-se ao de um ídolo chinês; sabes que o teu olhar aveludado faz o rei da Babilônia parecer o bispo do jogo de xadrez, que recua diante da rainha”.

 O Rubaiyat foi escrito há quase 10 séculos. Mas a analogia entre as regras de xadrez e de futebol não será aceita por todos. Haverá os que dirão que a comparação é imprópria, dado que os jogos são muito diferentes. Então vamos considerá-la apenas uma digressão, um exercício de divagação que não deve ser tomado em conta. Mesmo assim, é muito improvável que as regras de um jogo que faz tanto sucesso sejam alteradas com tal profundidade.

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