domingo, 22 de junho de 2014

Elio Gaspari

JORNAL O GLOBO

ELIO GASPARI
Os cartéis dos ônibus ganharam a Copa
Enquanto a choldra torcia ou protestava, uma emenda de MP acabou com a licitação das concessões
No final de maio, com jeito de quem não quer nada, o Congresso aprovou e enviou ao Planalto o texto final da medida provisória 638. Nele, uma emenda destacada pelo senador Romero Jucá estabeleceu que as concessões de linhas de ônibus interestaduais serão distribuídas num regime de autorização pela Agência Nacional de Transportes Terrestres. A Constituição diz que isso deve ser feito em licitações públicas. Aquilo que a lei manda, e que o governo sempre prometeu fazer por meio de um processo racional e transparente, ficará na dependência das canetadas de transportecas. Serão canetadas num mercado de R$ 4 bilhões anuais, onde há 2.100 linhas, operadas por 210 empresas. Delas, 25 controlam metade do mercado. Vale lembrar que 2014 é um ano eleitoral e uma
parte do ervanário desse setor rola em dinheiro vivo. Nenhum parlamentar de qualquer partido ou candidato à Presidência da República reclamou. Todos, contudo, defendem a racionalização, transparência e moralização das concessões de transportes públicos.
Nesse mundo acontece de tudo. No tempo do DOI-Codi, havia a intimidade do senador Camilo Cola (Viação Itapemirim) com a turma do porão. Ele tinha um patrimônio declarado de US$ 154 milhões e informava um rendimento mensal de R$ 10 mil à Receita. Em tempos de PCC, houve a presença de seus representantes numa discussão em torno das vans de São Paulo. No encontro esteve o deputado estadual petista Luiz Moura, destacado integrante da corrente PTLM (PT de Lutas e de Massa), onde brilha o secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto.
A medida provisória 638 saiu do Planalto com a elegância de Van Persie e voltou do Congresso com a truculência de um Pepe. Chamava-se "Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores" ou "Inovar-Auto". Tinha dois artigos, mas ganhou cerca de 30 contrabandos.
Desde o século passado, o governo anuncia que reordenará o setor de transportes com leilões e licitações. Em 2001, quando um projeto permitia a renovação das concessões por 15 anos, o deputado Aloizio Mercadante denunciava: "Isso é um escândalo. Onde está o ministro dos Transportes (...)? Ele é omisso ou conivente". Em 2008, o governo disse que abriria uma licitação para leiloar 1.600 linhas. Nada, ficou para 2009, 2011 e 2013. Em todas as ocasiões, os empresários do setor combateram os modelos apresentados, sempre seguindo a canção: "Quem está fora não entra, quem está dentro não sai". Às vezes, provavam que o governo estava legislando sobre coisas que não entendia. Em outros casos, os transportecas aceitavam as exigências destinadas a impedir o aparecimento de novos concorrentes.
Com o truque da MP, todo o poder irá para a ANTT. Sua maior glória vem de algo que não fez. Felizmente, não conseguiu tocar a maluquice do trem-bala.
Os transportes públicos urbanos são cartéis blindados em caixas-pretas. Os interestaduais funcionam melhor, mas repousam sobre uma estrutura legal caótica. O governo prometia que um dos legados da Copa seria a melhora da mobilidade urbana. Abandonou grandes obras prometidas para as cidades e aproveitaram a Copa para empurrar um retrocesso institucional na malha interestadual.
NA TRAVE
O ministro Teori Zavascki ficou devendo uma homenagem ao juiz federal paranaense Sergio Moro.
Em maio, Zavascki mandou soltar o petrocomissário Paulo Roberto da Costa, que Moro mandara para a cadeia meses antes. Dias depois da decisão de Teori, baseado na descoberta de US$ 23 milhões em contas suíças do ex-diretor da Petrobras e na posse de um passaporte português, Moro mandou prendê-lo de novo.
Bateu na trave. Zavascki não sabia dos novos detalhes, e o petrocomissário não estava condenado, mas, se ele tivesse fugido, iria para sua biografia mais
uma libertação esquisita determinada por ministros do STF. Num caso estelar, Gilmar Mendes mandou soltar o médico Roger Abdelmassih, condenado a 276 anos de prisão pelo estupro de clientes. Está sumido desde 2009.
PSB ORGIÁSTICO
O doutor Eduardo Campos diz que seu PSB faz política com novos métodos, rompendo a dicotomia PSDB-PT. Dito isto, aliou-se ao PSDB em São Paulo e ao PT no Rio.
Essa nova política teve a virtude de produzir uma novidade a um só tempo inteligente e divertida.
É a definição dada pelo deputado Alfredo Sirkis para o flerte do
Rio: "Coligação orgiástica". (Ele usou também outra expressão, menos dominical.)
JBS
Há um ano, o grupo empresarial JBS comprou o Canal Rural, emissora especializada em atender a audiência do agronegócio. Sendo um dos maiores processadores de alimentos do mundo, seu interesse na operação relacionou-se com um serviço aos seus produtores e clientes. Nada mais. O grupo JBS não pensa em se meter em empreendimentos jornalísticos.
O NOVO CAPITALISMO DE ESTADO
Saiu pela editora da Universidade Harvard o livro "Reinventing State Capitalism" (reinventando o capitalismo de Estado), dos professores Aldo Musacchio, de Harvard, e Sérgio Lazzarini, do Insper. É uma aula para quem quiser entender o que são (ou foram) as "campeãs nacionais" do BNDES, as acrobacias da Petrobras ou as manobras do governo na Vale, tanto na hora de privatizá-la como na ocasião em que Lula enquadrou-a, com a eventual ajuda de Eike Batista.
O professor Lazzarini já havia estudado as conexões de tucanos e petistas com os cofres da Viúva no seu "Capitalismo de Laços", publicado em 2011. Agora, ele e Musacchio pesquisaram um fenômeno que vai além do Brasil. Se aqui surgiu a JBS com investimentos do BNDES, que é seu maior acionista minoritário, na China o governo alavancou o Agricultural Bank. Eles mostram que, depois da onda de privatizações do século passado, o capitalismo de Estado reinventou-se. Viúvas de todo o mundo tornaram-se acionistas minoritários, com um braço forte capaz de prevalecer quando lhe interessa, como aconteceu na Vale. Mostram que, para o bem ou para o mal, há por aí um novo fenômeno.
Musacchio e Lazzarini navegaram pelos balanços, cruzaram desempenhos de empresas e doações de campanhas eleitorais. Estudando a origem dos executivos de 250 estatais brasileiras entre 1973 e 1993, construíram um banco de dados com 467 biografias. Num balanço, aqui e ali encontraram lombadas, mas o trabalho não estimulará a satanização do Estado.
"Reinventing State Capitalism" está na rede por US$ 41,73, contra US$ 44,03 para a edição de papel.

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