domingo, 22 de março de 2015

Poetas são outros

No romance Fernando Pessoa - O cavaleiro de nada, Elisa Lucinda funde sua voz à do escritor para revelar a beleza dramática da obra do gênio da língua portuguesa


Severino Francisco
Estado de Minas: 21/03/2015 



 (Almada Negreiros/reprodução)
Fernando Pessoa se autointitulava o “supra-Camões”. E, de fato, enquanto Os lusíadas cantou as aventuras marítimas portuguesas da era imperial por continentes desconhecidos, Pessoa é o poeta das aventuras do espírito, das viagens subjetivas, das navegações cotidianas e dos acidentes da vida moderna. O caso dele é singularíssimo. Na vida comum, empenhou-se em ser o mais anônimo dos mortais, um burocrata autor de cartas comerciais enredado na rotina mais trivial. A sua biografia factual é insignificante e completamente destituída de lances espetaculares. Queria, deliberadamente, tornar-se ninguém para ser muitos na ficção. Como escrever a biografia de um personagem que se coloca no lugar de ninguém? Esse é o desafio que Elisa Lucinda enfrenta no romance intitulado, significativamente, Fernando Pessoa – O cavaleiro de nada.

O repto é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. Verdadeiro porque Elisa é, na vida real, uma espécie de anti-Pessoa: mulher, negra, bela, exuberante, atriz e amante dos palcos. Os poetas costumam ser personagens meio alheados dos aspectos pragmáticos do cotidiano. Mas Pessoa radicalizou essa condição e transformou a imagem do escritor inadaptado a um mundo de relações cada vez mais mercantilizadas em um arquétipo de marginalização voluntária.

Lucinda supera o primeiro desafio ao fundir a sua voz na do poeta e tornar Pessoa um heterônimo seu: “Sinto-me viver vidas alheias em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, individuado por uma suma de não eus sintetizados num eu postiço”.

O desafio é falso porque Fernando Pessoa é íntimo de Elisa, ela conhece ou intui as leis secretas que regem o processo de criação, as sutilezas da relação entre vida e arte, as dissimulações e os dilemas do poeta: “Vi-me com apenas 11 anos, entre os meninos de 13, criado para ser um gentleman vitoriano; porém franzino por fora e infinito por dentro”, diz o narrador Fernando Pessoa. “(Ó, é sem modéstia que o digo). Não me invejem, ser infinito por dentro pode não ser bom”. Em outro trecho, a voz do próprio escritor é invocada para iluminar o drama de sua vida: “Em algumas, cheguei até a fazer estilo. Porém, nem por isso sofro menos. Um homem tanto pode sofrer vestido de seda como coberto de um saco ou cobertor roto”.

A narrativa de Lucinda desliza ardilosamente entre a ficção, a autobiografia, a fotobiografia e o ensaio. Ela acompanha a vida de Pessoa em uma sequência quase linear, do nascimento até a morte, passando pela infância, a morte do irmão Jorge às vésperas de completar um ano de vida, o rio da aldeia, a ilha da palavra, a amizade com Sá Miranda, a dramaturgia dos dias. Funde a voz na de Pessoa. No entanto, faz questão de distinguir, com muita clareza, por meio de um sinal gráfico, o próprio discurso e as citações do poeta.

REFERÊNCIA AFETIVA A personagem da avó, Dionísia Estrela, rotulada de louca, é uma referência afetiva e espiritual relevante no tecido da narrativa e na identificação do poeta inadaptado, alfabetizado no idioma inglês, mas que tinha a língua portuguesa na condição de pátria: “Escrever versos em inglês faz um efeito diferente na alma. Já escrever a palavra em português dava-me um conforto de terra firme no espírito.” A avó Dionísia tem a função quase de pitonisa grega, a desfiar comentários delirantes e incisivos: “Sua mãe que não é rainha de nada está a reclamar de quê? Ora, viva a sua língua, filho, e deixe que as más línguas se mordam!”.

Portugal sempre manteve relações estreitas com a África durante o período colonial e Lucinda estabelece esse embate com Fernando Pessoa ao contrabandear falas que colorem o drama de novas cores: “Na subjetividade, sou o mais branco dos zulus. E também o mais preto dos lusitanos por linhagem de mistérios. Há uma aldeia de tambores dentro de mim. Batuques. Escrevo beirando o abismo de tudo perder o sentido.”

A narrativa não encerra a vida de Pessoa às voltas com o próprio umbigo. No decorrer da trajetória, a relação com Portugal é abordada de maneira crítica e dramática: “Trágico Portugal, como és belo! Na tarde triste ouve-se o murmúrio do Tejo, o rio de minhas veias”. Ela explora recantos obscuros da alma portuguesa de um povo de espírito sonhador, mas de instinto predatório, despreocupado da construção paciente de projetos de desenvolvimento, nostálgico das aventuras ultramarinas: “Nessa história, pelo que vejo, não produzimos é nada. Ficamos sugando diariamente ouro, tabaco, traficando escravos e tirando suco das colônias sem plantar riqueza aqui. A Inglaterra já estava animada e firmando-se na onda da Revolução Industrial, nas locomotivas etc., e nós, viciados em chupar o sangue das terras que conquistamos, sem perceber que esse jeito de ganhar dinheiro sem fazer esforço podia sair-nos caro no futuro. Estou nostálgico. Um misto de saudade do que não houve de tristeza”.

DESLIMITES Esse romance é um ato de amor de Lucinda por Fernando Pessoa. E o olhar amoroso produz conhecimento. É um exercício de compreensão que ilumina dimensões delicadas e obscuras do poeta. A discussão sobre os limites do gênio e da doença percorre a trama. Fernando Pessoa se multiplicou nos heterônimos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Ricardo Campos, entre outros: “Hoje, entre uma bebedeira e outra, indago-me se sou gênio mesmo ou se o que me falta é medicação. Talvez eu ouça vozes. E daí? O que vale é que, dramaturgo do desfile de vozes da minh’alma, descrevo aqui a oficina onde armei o jogo da vida”.

Em vida, Pessoa sentiu-se, quase sempre, um estrangeiro na sua pátria e no seu tempo. Teve raros amores e amigos. O livro é uma bela iniciação a Fernando Pessoa. A mirada afetuosa, cálida, lúcida e lírica de Lucinda fulmina as incompreensões coladas à imagem do poeta português, o supra-Camões das aventuras cotidianas da modernidade: “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Ó minha vila natal em Portugal, tão longe! Por que não morri eu criança quando só conhecia a ti”. Lucinda protege Pessoa dos julgamentos rasos: “Prefiro a incompreensão pelo silêncio. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão”.

É uma homenagem amorosa de poeta para poeta. Lucinda roça a sua língua na língua de Pessoa: “A maior boca é a do Álvaro, mas todos têm rios a nascer das línguas”, escreve o narrador de O cavaleiro de nada. Ela sustenta o fôlego da língua elegante, fluida e luxuosamente precisa ao longo de mais de 400 páginas. Pessoa acumulou inúmeras biografias. Lucinda se apropriou de todo esse legado para traduzi-lo na língua epifânica da poesia, a língua de nascimentos e renascimentos.

Ao fim da leitura, ergue-se aos olhos do leitor um retrato complexo, dramático e pungente do poeta português. Com O cavaleiro de nada, Lucinda se torna uma verdadeira contemporânea de Fernando Pessoa: “Penso às vezes que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, essas frases que escrevo durarem com louvor, eu teria enfim a gente que me ‘compreenda’, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado”, escreveu, profeticamente, o poeta.
 (RECORD/REPRODUÇÃO)

FERNANDO PESSOA O CAVALEIRO DE NADA

• De Elisa Lucinda
• Editora Record
• 403 páginas, R$ 55

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