domingo, 28 de outubro de 2012

Quadro analítico dos cornos


IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Quadro analítico dos cornos

Cornos de ordem simples
Em seu projeto de demolir a sociedade capitalista, o socialista utópico Charles Fourier (1772-1837) investiu contra as raízes mais profundas do sistema: o casamento monogâmico. Idealizador de comunidades que prefiguram as utopias do amor livre no século 20, ele escreveu este "Quadro Analítico dos Cornos", com 76 tipos, do qual publicamos aqui uma seleção da primeira parte, "Cornos de ordem simples".

CHARLES FOURIER

tradução BERNARDO ESTEVES e PAULO WERNECK

1. CORNO EM GERME ou antecipado é aquele cuja mulher teve aventuras amorosas antes do sacramento e não entregou sua virgindade ao marido; como disse Molière, "se é pra ser só em germe, ele nem se incomoda". Nota: não são considerados cornos em germe os que sabem dos amores pregressos e, mesmo assim, enxergam conveniência no casamento; desse modo, aquele que se une a uma viúva não é corno em germe, nem aquele que conhece as relações anteriores da mulher e se acomoda.
2. CORNO PRESUMIDO é aquele que, muito antes do casamento, teme o destino comum, tortura a alma para escapar dele e sente a dor antes de prová-la realmente. Todos percebem que sua desconfiança só o levará à perdição na escolha da mulher e acelerar, por excesso de precaução, o acontecimento que ele tanto teme. Scarron retratou esse corno numa de suas novelas.
3. CORNO IMAGINÁRIO é aquele que ainda não é corno, mas se lamenta acreditando que é. Este, assim como o presumido, sofre a dor imaginária antes da verdadeira. Molière retratou-o numa de suas peças.
4. CORNO MARCIAL ou fanfarrão é aquele que, ao fazer terríveis ameaças contra os galanteadores, acredita estar a salvo de suas investidas, mas acaba vestindo a carapuça ao mesmo tempo em que se gaba de ter escapado dela graças ao terror que espalha ostensivamente. Em geral, é corneado por um dos que aplaudem suas fanfarronadas e lhe garantem que ele é o único que sabe zelar pelo seu lar.
5. CORNO ARGUTO ou cauteloso é um homem fino e matreiro que, conhecendo todas as manhas do amor e farejando de longe os galanteadores, toma sábias providências para despistá-los. Leva notável vantagem sobre eles, mas, como até o mais hábil general no final experimenta dissabores, acaba subjugado ao destino comum. Pelo menos, embora seja corno, quase não é.
6. CORNO ENGRAÇADINHO é aquele que brinca com seus colegas e os trata como imbecis que bem que merecem o que lhes acontece. Os que o escutam se entreolham sorrindo e aplicam tacitamente o versículo do Evangelho: "Vês um cisco no olho do vizinho, não vês um poste no teu".
7. CORNO PURO E SIMPLES é um honorável ciumento que ignora sua desgraça e não se presta a piadas sobre seus atributos ou atitudes desajeitadas contra a mulher e seus perseguidores. De todas as espécies de corno, é a mais louvável.
8. CORNO FATALISTA ou resignado é aquele que, desprovido de meios pessoais para segurar a esposa, se conforma com o que Deus quiser e se refugia na Justiça e no dever, lembrando que sua mulher seria mesmo culpada se o traísse -o que ela decerto faz.
9. CORNO CONDENADO ou designado é aquele que, afetado por deformidades ou enfermidades, assume o risco de se casar com uma mulher bonita. O público, chocado com tamanho contraste, condena-o por unanimidade a ostentar os chifres -e a sentença não poderia ser mais bem cumprida.
10. CORNO IRREPREENSÍVEL ou vítima é aquele que, juntando a cortesia com as vantagens físicas e morais, e merecendo uma esposa honesta sob todos os pontos de vista, é no entanto traído por uma coquete, e recebe o apoio do público, que o declara digno de um destino melhor.
11. CORNO POR PRESCRIÇÃO é aquele que se ausenta e faz longas viagens, enquanto a natureza toca os sentidos de uma esposa que, depois de se defender o bastante, é forçada pela duração das privações a aceitar o socorro de um vizinho caridoso.
12. CORNO OCUPADO é aquele que o torvelinho dos negócios afasta continuamente da esposa, de quem ele nunca pode cuidar; ele é forçado a fazer vista grossa aos que acabam se tornando amigos discretos da família.
13. CORNO DOENTE é aquele que, por um imperativo de saúde, se abstém dos trabalhos da carne. O mínimo que sua mulher pode fazer é recorrer a substitutos, sem que o marido tenha o direito de se ofender.
14. CORNO REGENERADOR ou conservador é aquele que cuida dos interesses da comunidade, vigia a casa dos compadres e adverte que a honra deles está a perigo. Não vê, entretanto, o que acontece em seu próprio lar, e talvez devesse ser o sentinela de si mesmo, enfrentando a batalha no próprio front.
15. CORNO PUBLICITÁRIO é aquele que exalta as delícias do lar, estimulando todos a se casar e lamentando a infelicidade dos que se recusam a desfrutar como ele... de quê? Dos chifres. A quem ele faz a apologia do casamento? No mais das vezes, é a quem que lhe põe os chifres na cabeça.
16. CORNO SIMPÁTICO é aquele que se afeiçoa aos amantes da mulher e se torna amigo íntimo. Alguns deles, quando a dama está de mau humor e brigada com o amante, o procuram para dizer "Faz tempo que a gente não se vê, estamos tristes. Não sei o que a nossa mulher tem. Venha nos fazer uma visita, isso vai distraí-la".
17. CORNO TOLERANTE ou bondoso é aquele que, tendo o amante da mulher hospedado em sua casa, se porta como um cavalheiro que faz as honras da casa, limita-se a repreender a dama secretamente e trata o amante como a todos, com a perfeita igualdade que a filosofia recomenda.
18. CORNO RECÍPROCO é aquele que dá o troco e fecha os olhos, pois busca uma indenização na mulher ou parente daquele que lhe põe os chifres. Trata-se de uma dívida quitada: é melhor se calar num caso desses.

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