quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Em Gaza como em Milão - Marina Colasanti‏



Estado de Minas: 29/11/2012 
A manhã não começa mais com o cantar do galo que nos despertava para os sons da natureza e a vida do quintal. A manhã começa com o jornal que nos chama para os fatos dos homens, a vida e a morte no mundo. 

No meu colo, uma das tantas fotos do enfrentamento em Gaza. Um ancião anda apoiado na bengala, diante dos escombros de um prédio semidestruído por um ataque aéreo. Pode ter sido ali sua casa, ou não. O velho não olha os escombros, olha o chão à sua frente, terra removida, árdua para as sandálias.

Mas naquilo que foi o terceiro andar daquilo que foi o prédio, nas únicas duas paredes ou partes das paredes que restam daquilo que talvez tenha sido uma sala, sobrou algo pintado. São paisagens. Ocupavam o espaço todo, do chão ao teto. De um lado só vejo o azul do céu, algum verde, e algo que pode ter representado uma antiga construção. No outro, no fragmento do outro, é claramente visível a mansidão de um gramado que se alonga até encontrar arbustos, e logo floresta, e a elegante precisão de três ciprestes. Há uma fenda na parede. Ultrapassada esta, erguem-se ainda na pintura, intactos, três arcos clássicos sustentados por colunas, espécie de eco arquitetônico dos três ciprestes.

Quando, logo depois da Segunda Grande Guerra, atravessei Milão com a minha mãe, vi escombros como esse. Não como esse, exatamente, porque os prédios daquele tempo não eram construídos com concreto, não tinham lajes e, bombardeados, não exibiam vergalhões retorcidos. Os prédios daquele tempo eram modestamente de tijolos, vinham abaixo com mais facilidade, como se obedientes ao desejo de destruição do inimigo. Mas, do mesmo modo, estes e aqueles guardam nas paredes vestígios da vida que os habitou e foi sua razão de ser. 

Os de Milão, que meu olhar não esquece, vazios por dentro de alto a baixo, como caixas, conservavam ainda um ou outro quadro pendurado, os azulejos de uma cozinha, a marca da cabeceira de uma cama. Via-se, exato, o desenho dos que haviam sido degraus de escada.

 No silêncio da cidade em que a destruição havia aniquilado o trânsito, aqueles sinais dialogaram com a menina que eu era. Encheram-me de tristeza e medo – poderia ter sido eu a ocupante da cama de que nada mais restava além da marca desbotada na pintura, poderia ser meu o retrato pendurado na parede –, mas de alguma forma me acalentaram. Sinais de vida, embora calados, eram melhores do que vida nenhuma.

É provável, muito provável, que o velho da foto já tenha tido sua casa destruída mais de uma vez, ou que a tenha perdido. Casas são tão frágeis na estrutura física quanto resistentes na simbólica. Um tufão, um terremoto, um invasor, uma nevasca, uma bomba ou um foguete, uma epidemia ou um incêndio, tudo pode arrancar o ser humano da sua morada. Se ele não for soterrado pelos escombros ou levado pelas águas, se sobreviver, mesmo estando destruída, sua casa sobrevive com ele. Pois ele não pertence à casa. A casa está nele, sempre em construção.

Que agradável terá sido para seus habitantes a sala pintada de Gaza. Ali festejaram e discutiram, ali desfiaram o cotidiano, acolheram seus filhos, e estiveram bem. Aquela sala acabou. Mas o que nela foi vivido continua vivo, alimentando um desejo de casa, à espera de meios que permitam erguer novas paredes.

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