sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Que nem gente - Alcione Araújo‏

Publicado- Estado de Minas 09/07/2006

"Aos passantes deve parecer bizarro um homem de tênis, bermuda, óculos escuros e boné, assistir a outro, de uniforme e gaiola à mão, imitar um passarinho"

O canto do passarinho sobe ao meu andar colorindo de sons o silencioso frescor da manhã. Embalado pela melodia, a memória reflui à infância, quando ouvidos, olhos, nariz e a cabeça eram mais receptivos à vida natural. O recuo no tempo, porém, não alivia meu desconhecimento dos pássaros, seus cantos, plumagens e vôos. E sinto a lacuna como uma perda que a vida ainda não deixara que se revelasse, e agora me deixa suscetível. E quanto mais ouço as rebuscadas volatas do gorjeio – melodioso, mas de poucas notas, não mais que cinco ou dez em cada frase musical –, mais lamento não saber associar o canto ao nome, a música à plumagem. E me lembrei do mestre e amigo Enio Cunha, passarinheiro de estirpe e canaricultor renomado, que certamente diria nome, sobrenome, pedigree, costumes e idiossincrasias da ave que, da garagem, alegra, anonimamente, minha manhã. 

Dias depois, à porta do prédio na volta da caminhada, o porteiro segura a gaiola coberta por capa de pano branco. Indago se era aquele o passarinho que canta de manhã, e ele abre radiante sorriso de candura, olhos brilhando como o pai coruja ao ouvir referência ao filho, e quer saber se gosto do que ouço. Disse o que, intuí, ele queria ouvir, mas achou pouco e, sem se conter, pediu confirmação: “Gosta mesmo?” Repeti que alegrava minhas manhãs. Animado, ergue a capa e me apresenta a um passarinho pacífico, sem cores nem brilhos, de uns 10 centímetros, metade cauda, plumagem preta e branca com leves tons de cinza. Confesso meu desapontamento com o abismo entre o canto e a imagem, talvez por associá-lo à lourice do canário. Pergunto qual é a espécie – disse espécie e senti que, embora correta, a palavra era inadequada –, ele responde: “Coleiro!”, e senti um vivo orgulho na sua voz. 

Incumbido de controlar entradas e saídas, o porteiro é presa do seu ofício. Uniformizado, confinado entre as grades e paredes, seu senso de liberdade vai se conformando ao do pássaro na gaiola, de cuja porta detém a chave. Reféns da sobrevivência compartilham restrições, trocam amabilidades, consolam-se. 

Inflado pela minha curiosidade, ensina: “Há coleiro de gola e peito brancos, cabeça preta e peito amarelo, gola e peito amarelos, cabeça preta e gola marrom; coleiro mineiro e coleiro goiano. O de gola dupla é o mais cantador, é o coleirinho, papa-capim. É o passarinho mais apreciado pelas crianças”. E quando pergunto a razão da capa na gaiola, explica, com voz calma e suave, que é para aquecer a gaiola à noite e, durante o dia, para protegê-lo do vento e evitar sustos com buzinas e movimentos bruscos. De forma carinhosa diz: “É um bichinho manso, habituado ao cativeiro. E, caçoa: tão educado, que não tira a gravata nem dentro de casa! O senhor apareceu de repente, ele não se agitou voando de um lado ao outro, nem se machucou batendo contra o arame das grades. E canta feito curió ou azulão!” 

E passa a explicar o canto do coleiro, com um entusiasmo que nunca vira naquele homem humilde, de bons dias, boas tardes e boas noites: “Tem uns que cantam tuí-tuí-zel-zel e não repetem os pios; mas tem coleiro que dá a terceira nota: tuí-tuí-grom-grom-ze-ze-zel-zel, ou até tuí-tuí-tchô-tchô-tchô-tchá-tchá-tchá”, imitando o canto, não com assovios, mas com a própria voz, grave e máscula, em inesperadas variações de ritmos e tons, que atingem agudos de soprano. Aos passantes deve parecer bizarro um homem de tênis, bermuda, óculos escuros e boné, assistir a outro, de uniforme e gaiola à mão, imitar um passarinho: rosto rubro, veias dilatadas, reproduzindo gorjeios. 

Mais que a bizarra aparência, me tocava a transfiguração. Supondo me iniciar nos mistérios do coleiro, aquele homem, sem o saber, revelava seus próprios mistérios: a insuspeitada delicadeza que dedica ao passarinho. Com ternura infinda, disse: “Coleiro é que nem gente, adora cantar. Quanto mais ganha carinho, mais manso fica e melhor canta!”. Agora sei que a música que chega ao meu andar e colore o silêncio da minha manhã vem de uma afinada dupla. 

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